Semana passada terminei de ler Ulisses. Parece que quando se trata de clássicos o tom dominante é falar que tudo já foi falado sobre tal livro, ou muito já foi falado e não se pode querer acrescentar algo sem um ponto de partida radicalmente diferente na leitura... Ainda que todo tom dominante vá naturalmente adquirindo seu quê de cansaço, em Ulisses dificilmente se encontraria alguma postura mais apropriada. Ainda mais considerando que eu só li o livro, e não o estudei (e Ulisses parece mesmo ser um livro a ser estudado em vez de simplesmente lido), vou falar mesmo é da minha experiência com este über-romance.
Hesitei bastante em tomar a decisão de ler o livro. Parecia para mim um livro-código, que para mim é uma estética bastante chata. A estética do código é aquela que a coisa que está na superfície não faz sentido nenhum, ou quase nenhum sentido, e é preciso decifrar qual o sentido oculto (quase sempre exato, definido, unívoco) da coisa para que se consiga discernir um mínimo do negócio. É aquele livro que tem que ser lido com a interpretação correta do lado. Como se num romance brasileiro um personagem tivesse o nome de 01041964: uma referência ao golpe de 64 que só faz sentido sendo esta referência, não fazendo sentido no mundo da verossimilhança nem na sequencia dos acontecimentos do enredo. Significados escondidos me fascinam, como quase a qualquer leitor de literatura, mas me fascinam mais se estão bem escondidos atrás de uma superfície que em si faz sentido. Me parece algo mais próximo da experiência de vida que temos, quando vemos uma coisa em nossas vidas que parece se dar por um motivo aparentemente fechado e na verdade vai se abrindo para outros sentidos quando paramos para pensar um pouco mais.
Ulisses certamente é talvez o mais livro-código de todos, com as referências à Odisseia e tudo mais, um parágrafo mudando radicalmente o estilo em relação ao anterior, etc etc. E sim, de forma geral ainda acho isto meio cansativo, ainda que aqui tenha um significado maior presente no livro todo (a pequeneza da vida dos personagens em Dublin, em si também uma cidade tida como insignificante no mundo cosmopolita da Europa, e ligações profundas com o Ocidente Maior, o Universal, etc). Digamos assim que não é um livro cuja a dificuldade de leitura tem sido superestimada, na maioria dos casos. Não é ilegível, certamente, mas que exige paciência e disposição, exige.
O que me sustentou na leitura do negócio foi mesmo a linguagem. Como tive o privilégio de aprender inglês ainda jovem, pude pular a etapa da escolha da tradução (pelo pouco que folheei das três a do Galindo me pareceu superior, pegando realmente a natureza desbocada do texto, ainda que tenha um y inexplicável no título) e fui ao original, e pude ver direto como James Joyce cria beleza de absolutamente tudo. Penso que sua escolha pela banalidade do cotidiano de um dia qualquer tenha origem em parte do seu talento de fazer o cara sentado tomando chá uma coisa lindíssima:
"On the boil sure enough: a plume of steam from the spout. He scalded and rinsed out the teapot and put in four full spoons of tea, tilting the kettle then to let the water flow in. Having set it to draw he took off the kettle, crushed the pan flat on the live coals and watched the lump of butter slide and melt. While he unwrapped the kidney the cat mewed hungrily against him. Give her too much meat she won't mouse. Say they won't eat pork. Kosher. Here. He let the bloodsmeared paper fall to her and dropped the kidney amid the sizzling butter sauce. Pepper. He sprinkled it through his fingers ringwise from the chipped eggcup."
(esse negócio de juntar palavras (que o Cormac McCarthy também faz direto) que no inglês soa super-natural tipo ringwise, eggcup, bloodsmeared, eu acho massa demais)
Os contrastes formais dentro do texto, um verdadeiro zoológico estilístico, acaba servindo muito para estes momentos que brotam de repente e fazem com que o leitor mais ligado na beleza da escolha das palavras consiga ânimo para continuar a leitura.
(existem comparações do Ulisses com Grande Sertão Veredas, mas me parecem totalmente descabidas para além do complexo de inferioridade brasileiro de querer ver sua produção validada pelo exterior, ainda que por meras comparações. GSV é uno, coeso, enquanto Ulisses é múltiplo, enlouquecido. Já foi mencionado aqui no blog a ideia do Rosa de que lá pela página 50 se acostuma com a fala de Riobaldo, em Ulisses não existe um "estar acostumado" com o livro, ele vive te dando rasteira)
O fato do livro estar firmemente calcado em uma forma de escrita que eu geralmente não aprecio (livro-código, teses ocultas que sustentam um livro que no nível da superfície, de enredo, não se sustenta, etc) e mesmo assim ter sido uma leitura prazerosa só serve de prova de que realmente se trata de um livro foda, não só no sentido da dificuldade. Mas dizer que se trata do suprassumo da literatura é a meu ver um contrassenso, é como dizer que Stockhausen ou John Cage é o máximo da música: tomar o máximo da vanguarda como padrão universal pode até fazer algum sentido dentro de um pensamento estritamente formalista, mas acaba sendo potencialmente danoso para o lugar da arte séria na sociedade. Imagino eu mesmo adolescente começando a ler literatura sendo entregue o Ulisses com a ordem de que "literatura é isto". Eu certamente teria voltado para os romances de escapismo. A vanguarda tem enorme valor, , mas acho que é mais produtivo (e fiel) manter um pouco o lugar de extremo no qual foi concebida.
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Realmente não tenho muito a dizer sobre o livro além de ficar elogiando alguns trechos bonitos, heaventree, whatness of allhorse, snotgreen, disappointed bridge, etc etc.
Mas uma coisa que eu achei marcante além deste plano do estilo é de como se trata de um livro alegre, de-bem-com-a-vida-apesar-de-tudo, coisa realmente rara na literatura, que em geral tende a ser depressiva, decepcionada, etc. A divisão clássica de gêneros narrativos em Tragédia e Comédia frequentemente dá a entender que tratariam do lado pesado e do lado leve da vida em equilíbrio, mas a comédia frequentemente não é leve, tanto que acho que seria bem possível rebatizar esta divisão como "Desgraça e Escárnio". Ulisses certamente é debochado, frequentemente bem engraçado mas não se vê desprezo em suas páginas (como se escuta em George Carlin, ou Louis CK, etc etc). O que se percebe é realmente uma felicidade quase bizarra com a humanidade.