Ah, meus textos agora estão aparecendo no medium, caso alguém por aqui não esteja avisado disso ainda.
https://medium.com/@brenokmmel
As ordens da desordem
Um blog de e sobre literatura, por Breno Kümmel
sábado, 11 de agosto de 2018
segunda-feira, 7 de agosto de 2017
Sobre Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron
O cadáver de um gato pode ser apreendido tanto como a coisa
mais distante quanto a coisa mais próxima que se pode ter de um gato. A morte é
tanto a definição quanto a anulação da vida, todo ser vivo é mortal. A escrita
consagra e encerra os assuntos por ela discutidos, por mais que se faça um
parágrafo final protocolar convidando a discussões posteriores. Uma membrana
cria a separação e mantém o contato entre duas substâncias diferentes,
vizinhas.
O fascínio racionalista do ser humano encontra em poucas outras
coisas além do quebra-cabeça um exercício que esteja à altura de seus delírios
de dominação. Milhares de pequenos pedaços que por si só dizem nada ou quase
nada, um pouco de uma curva de um queixo erguido para retrato demorado, o
espaço escuro entre uma maçã e uma pera em cima de uma mesa de um anônimo, um
branco indefinido que pode ser tanto parede quanto paisagem, mas com sagacidade
e paciência (os mais pacientes afirmariam que a paciência seria a principal
inteligência, ignorando a rima irritante) é possível recuperar depois de várias
horas a totalidade da imagem e do sentido. É a capacidade humana concentrada em
seu ímpeto incansável de domar o universo: podemos colocar o mundo sob nosso
controle, se nos esforçarmos no sentido certo.
O universo, sim, cede alguns centímetros, talvez apenas para
nos entreter, ou se entreter, ou, muito mais provável, indiferentemente,
sabendo ou não que seu principal, o improvável, o irrazoável, o caos, não está
a alcance do nosso controle. As questões que ficam sem solução não por falta de
inteligência, ou esforço, ou recursos, e sim apenas por não ser o tipo de
questão que tenha resposta, ou resposta recuperável, essas não são alvo de
discussão ou deliberação razoável, está nas mãos de um Deus que cada vez mais
convence menos pessoas de sua existência.
O cerne principal do Noite dentro da Noite me parece ser
esse. Uma subversão profunda e estrutural das expectativas da lisura de um
entendimento pleno. Narrativas de origem
pessoal, de resistência política, de espionagem, como quase todas os outros
gêneros, partem do princípio de um movimento da ignorância para o conhecimento,
do errado para o certo. A vida, no entanto, não propicia esse movimento com a
naturalidade das narrativas, e talvez seja essa a justificativa da existência
dessas histórias, a capacidade que têm de em parte acalmar temporariamente
esses anseios sem correspondência. O alemão que apesar de sua aparente vida de
homem comum NA VERDADE trabalha para o nazismo, o garoto que apesar de ter sido
criado para tomar como normal todas as injustiças sociais de seu mundo NA
VERDADE entende o sistema capitalista e resolve combatê-lo, o homem que segue
sua vida estudantil e profissional dentro das expectativas NA VERDADE
precisaria desvendar vários segredos a respeito de seu passado para recuperar
seu Eu Legítimo. A normalidade anterior, errada, na verdade seria suplantada
apenas para a substituição de outra, talvez mais correta ou bonita, mas ainda
assim dotada de uma estabilidade de entendimento perfeito.
O instrumento que temos a nossa disposição para construir
uma imagem de mundo que nos possibilita a sobrevivência, essa víscera em forma
de noz (em uma das vívidas e brilhantes expressões do romance), até consegue
enganar por longos períodos no que diz respeito sua capacidade de captar a realidade
de maneira completa. Afinal, é o cérebro que conta e ouve a história, o
enganador e o enganado. É ele que rege e depois entende por normal e razoável o
mundo que o ser humano criou para sua própria espécie. Que produz esquecimentos
aparentemente sem qualquer critério, a ponto de esquecermos o que esquecemos.
Dependurado por inteiro nesse órgão frágil, falho, o mundo na verdade é bem
mais movediço do que pode parecer.
O romance, claro, evoca temas condizentes com essa estrutura
instável para sustentar sua complexa construção de realidade. É o que requer a
empreitada literária, um ponto fixo para determinar as movimentações violentas
do resto do livro. Um acidente em que o garoto bate a cabeça, a epilepsia, o
trauma, as torturas. O estabelecimento de um estrato onírico subjacente aos
acontecimentos, uma liberdade unidirecional, só para baixo, mantém um tom de um
pesadelo permanente. A ambientação do pântano, o terreno em que nem mesmo o
chão é confiável, sendo alternadamente terra ou lama ou água, ou barranco de
queda perigosa, numa umidade em que o próprio ar parece água, nunca vem a ser descritivamente
substituída por outras quando a história carrega os personagens para outros
lugares como o Rio de Janeiro, ou Buenos Aires; a única exceção vívida sendo a
surrealista neve vermelha de Medianeira. Os porões de tortura, literais ou
figurativos (a violência a céu aberto, testemunhas caladas pelo medo da morte ou
pela morte), suscitam também outro grau de incerteza, a das confissões
arrancadas a alicate, a princípio entendidas como verdades absolutas
desenterradas que em vez disso são qualquer fala que faça com que a tortura
acabe, diferentes sessões com um mesmo aprisionado revelando verdades diferentes,
desesperadas, sondagens para ver quais seriam as palavras mágicas para qualquer
libertação. A única palavra máxima para tratar o momento, no entanto, seria
inútil: azar. Azar de nascer onde ter nascido, de ter desenvolvido alguma
consciência do absurdo do mundo e, sobretudo, azar de ter sido capturado. Azar
de se ver cercado ou refém dessa criatura mesquinha, violenta e cruel que é o
ser humano.
Com essas complicadas bases de realidade fundando o romance,
é permitido ao lirismo espesso, barroco e apoteótico da narrativa uma
constância maximalista a princípio insustentável, em que o eventual
fraquejamento de um ou outro exagero que não cabe (diferente de todos os outros
exageros que cabem e carregam mais adiante a força do romance) não compromete um
equilíbrio sempre posto em pontos de desequilíbrio, e tampouco cansa a dicção
maximalista, uma vez que ela não opera em uma normalidade que busca qualquer
coisa próxima com o cotidiano. É um universo pútrido, tanto no aspecto físico e
fisiológico quanto no moral-histórico, a ambientação da ditadura
inteligentemente desenvolvida não como um passado a-ser–compreendido-para-ser-superado
e sim como momento de mero desnudamento das forças sempre presentes na
sociedade brasileira, ou mesmo latino-americana: levando em consideração a
atuação das polícias da maior parte do país, nas suas tentativas desastrosas de
conter a violência urbana de um dos países mais perigosos do planeta, o slogan
“tortura nunca mais” foi criado e saudado como superação em uma sociedade em
que se tortura ainda mais do que na época ditatorial.
O lirismo do livro é um da textura, essa característica de
descrição bem mais difícil de apreender do que linha ou cor, o que mais se
perde de um quadro ao vê-lo em reprodução do que na vida real (a representação
correspondendo a muito menos do que o representado). Característica mais pertencente
ao tátil do que ao visual, uma espécie de sensação cega. Que exige, ou
valoriza, a presença, a experiência que não seja a partir do reportado. E mesmo
o contato direto não é suficiente para estabelecer certezas, servindo apenas de
garantida de uma não-diminuição dos sucessivos impactos, para os quais é impossível
qualquer tipo de preparo mínimo.
Fica claro logo nas primeiras páginas que o romance não quer
menos do que se inscrever na minguada listagem de obras primas da literatura
brasileira, Cronica da casa assassinada, Grande sertão: veredas, Dom casmurro,
A hora da estrela, etc. Todos os xingamentos externos naturais a essa ambição provavelmente
já foram pronunciados, provavelmente de antemão, e serão repetidos por muito
tempo ainda, como pretensioso, artificioso, metido, “se acha demais”, etc,
assim como já foram arremessados contra os livros de lugar já assegurado no
cânone. O erro do autor, nessa visão de ódio automático ao contemporâneo, é
querer se igualar aos gigantes, como se alguém alcançasse qualquer coisa
extraordinária sem antes mirar alto, e o erro fosse vergonhoso a ponto de
invalidar a tentativa. Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron, em toda sua
radical originalidade, mira altíssimo, em um alvo que a gente só descobre que
existia por ter sido acertado. É um romance extraordinário, grandioso, um
monumento.
terça-feira, 18 de abril de 2017
Resenha nova no Jornal Rascunho: Butcher's Crossing, John Williams
Tirando um pouco da poeira por aqui:
http://rascunho.com.br/faroeste-realista/
http://rascunho.com.br/faroeste-realista/
terça-feira, 13 de dezembro de 2016
Primeira página e meia
Um pedaço da ficção em que venho trabalhando, a primeira página e meia. Acho que estabelece bem o tom da história:
--
No tampo da
baia, a vibração. Uma pausa, breve, de criar uma esperança, e depois de novo,
vibrando. Não era uma mensagem, era ligação. Claro, ela não era de mensagens,
ela era de ligar, fazer o celular tocar e tocar. A espera por resposta seria
inadmissível, mesmo o instantâneo não era rápido o bastante, e devia já estar
se incomodando com a demora, em leve xingamento sobre como as pessoas conseguem
ser tão irresponsáveis, esquecerem seus aparelhos no silencioso. Antes fosse
esquecimento.
Não, não precisou
esticar o pescoço para poder ler na tela do aparelho que deveria ter ficado
dentro da bolsa, esquecido, e não ali, gemendo seu vibrar contra a madeira
prensada de cor clara e vagamente agradável da mobília de seu trabalho. Outra
vibração, insistindo. Sentiu o olhar da colega ao lado em pergunta, como se
tivesse o direito de perguntar qualquer coisa, você não vai atender isso aí
não.
Não. Já não
bastava aquela noite que estava para perder, bem na beira do fim de semana que
chegava sempre com ares de finalmente, precisava perder também sua paz agora da
tarde, ou o que restava dela ante a expectativa do evento por vir. O sorriso
fotogênico de sua mãe com seus óculos elegantes emoldurando os olhos de um azul
que ela não havia herdado, a tela acesa projetando para ninguém e o teto aquele
rosto e nome, insistentes, vibrando. A tela se apagou com o fim da chamada, mas
já sabia que seria questão de segundos até que recomeçasse.
Não tinha como
ser diferente. De novo a vibração, aquela iluminação inútil, o desgaste. Como
se nunca pudesse sair de perto, descer ao restaurante do tribunal para tomar um
café que não fosse o de licitação disponível nas garrafas térmicas velhas e encardidas
que sempre vazavam pelas laterais respingando na parte externa dos copinhos descartáveis,
ir ao banheiro com aquele cheiro forte de detergente para esconder o de urina sem
querer contaminar o telefone com todas as bactérias resistentes às limpezas
matinais, ir à sala da chefia para ter uma conversa mais demorada que não fosse
sujeita a interrupções das mais aleatórias e inúteis, barulho de mensagem às
vezes só propaganda oferecendo empréstimo para milhares de números vazados ou
vendidos usando até a flexão de gênero errada, não importa, ainda conseguiam
seus trouxas (palavra aliás unisex, nada mais justo). É dívida, perguntou a
colega ao lado, sorrindo da própria piadinha.
Não, é minha
mãe, vai ter jantar hoje na casa dela, com meu irmão e o marido dele. E você
não vai atender? Ela não respondeu à colega, que emendou ainda com um vai que
ela precisa que você compre alguma coisa pra levar. Dicas de convivência vindas
de alguém que não conhece a pessoa sendo discutida, sempre muito úteis. Óbvio
que não faltava nada para o jantar, nunca faltaria. Estaria tudo comprado desde
pelo menos terça-feira, preparado desde ontem, exceto o precisava ser fresco,
que estaria sendo preparado nesse momento ou até mais tarde um pouco. Qualquer
parafuso fora do lugar seria corrigido ou eliminado muito antes de qualquer
pedido por ajuda, salvo em caso de incêndio.
E não, a
ligação estava vindo do número fixo, quanto a isso estava tudo certo.
Aliás, por que
afinal precisaria ser numa sexta feira, a última aula que ela dava era na
quinta à tarde, poderia ter marcado na quinta. Não sabia das aulas do papai
naquele semestre, mas sem dúvida seria uma informação irrelevante.
Desistiu, e
pegou o aparelho.
– Por que
tanta demora? – antes mesmo de um alô.
Hoje tá bem
movimentado aqui, mãe. Uma mentira que ela sabia que não convenceria ninguém, mas
a incredulidade foi bem absorvida pelo do breve silêncio que seguiu sua
desculpa.
– Bem, tanto
faz. Eu queria te pedir para você chegar um pouquinho mais cedo hoje, preciso
da sua ajuda com uma coisa.
Ai, mãe, já
tava combinado tudo com a babá, o horário, ela só tem o carro dos pais a partir
das sete e meia.
sexta-feira, 25 de novembro de 2016
A análise da sexta-feira
Aviso:
spoiler do livro novo do Laub, o tribunal da quinta feira, em um nível
última-página mesmo. Discuto questões do livro tomando como pressuposto o
conhecimento da história toda, isto é, não me dou o trabalho de apresentar as situações
a serem analisadas.
Don
Delillo, em seu romanção Submundo, elege o World Trade Center como metáfora
perfeita para a segunda metade do século XX vivida nos Estados Unidos: é tanta
exuberância que o pessoal vai lá e constrói não um arranha-céu e sim dois, um a
cópia do outro, do lado do outro. O livro foi publicado em 1997. É daquele tipo
de coisa que até o sujeito mais politicamente libertário do mundo ia achar razoável
que a CIA espionasse o cara. Em 1992 ele também previu em seu romance Mao II
que com o fim da guerra fria as cartas da geopolítica seriam dadas pelo
terrorismo. Como todos sabem, nossa literatura não é tão universal quanto a
americana (não temos PIB per capita o bastante para isso), e assim cabe a nós
previsões bem menos grandiosas: o primeiro comentário que vi nas redes sociais a
respeito do livro do Laub (que não fosse as divulgações editoriais/jornalísticas
do tipo “em novo livro, Michel Laub discute...”) se deu na forma exata em que o
escândalo narrado em suas páginas é inaugurado para discussão pública. Um post
vago, curto, que é seguido por um comentário pedindo especificidades e a pessoa
responsável pelo ato de vaguebooking dando a resposta da charada de imediato.
Só
é possível imaginar que a resenhista-express do romance em rede social não
tenha lido o romance e sem querer tenha dado ao Laub um mínimo de mérito que
lhe seja devido, o de saber em detalhes como que se dá esse fenômeno que o
livro pretende discutir, o mimimi de macho que se diz oprimido ou a prática
linchamento online. Claro, não que a concessão desse mínimo seja minimamente
garantida em discussões dessa natureza, nessa luta meio fácil contra os
fascistas (todos podem e devem participar, é tudo claramente delineado em bem e
mal, a pauta disponível a ser reaberta todos os dias) é sempre péssima estratégia
ceder qualquer centímetro de território.
O
que me incomodou no livro do Laub, na verdade, foi a coisa da AIDS. Mas antes
disso cabe discutir o que há de ser mais discutido sobre o livro: explicito
aqui pros que não entenderam ainda via entrelinhas que estou do lado
anti-linchamento e não anti-mimimi. Não que reputações devam sempre ser
mantidas ilesas a partir de erros cometidos, que certos atos merecem ser
trazidos à tona para exposição e discussão, mas acho que de fato existe uma gana
ensandecida em muitos de participar do justiçamento da vez, a cooptação imediata
de acontecimentos particulares por narrativas sociais maiores, mesmo que
corretas, antes de se ouvir o outro lado ou pelo menos terceiros que poderiam opinar,
nesse mínimo resguardo que a sociedade civilizada conseguiu de construir algo
assemelhado a justiça. Dar esse espaço é dar espaço ao Inimigo, que, se pudesse,
pisotearia em todos nós o tempo inteiro; nosso grito de guerra é nossa defesa e
nosso ataque para que isso possa deixar de acontecer. Como vivemos em uma
sociedade machista (e é difícil imaginar que alguém de inteligência mínima vá
discordar disso), e a luta se impõe como importantíssima, toda denúncia de
machismo tende a reverberar como verdadeira, em seus mínimos detalhes, sem que
nada da desavença possa ser enquadrada como mal-entendido ou mesmo
interpretação enviesada por animosidade. Quanto mais gritarmos, mais
avançaremos na causa por uma sociedade mais igualitária e etc, cabendo sempre
acreditar em toda denúncia, repetir todas as palavras de ordem que cabem à história
ainda sendo revelada; caso contrário, você é parte do problema, e não da solução.
Quem pede calma não pede nada, ou quer que tudo continue como está.
A
medida do que constitui justiça é, com a exceção de casos monetários, sempre
arbitrária; quanto vale em dinheiro ou tempo um ato de dano moral, ou mesmo
corporal? O acerto perfeito é impossível de se encontrar, o que talvez leva
alguns a acreditar que o exagero não existe. Foi possível encontrar mesmo em
macacos um instinto de indignação a respeito do que é justo e não justo (um experimento
já clássico em que para macacos diferentes se entregava recompensas diferentes
pela mesma tarefa, o prejudicado sempre reclamando, desprezando seu prêmio
fajuto), e ainda assim acredita-se que a noção de equanimidade seria das
capacidades mais altivas e sofisticadas do ser humano. Como se não houvesse
impulso ou afã de conseguir controlar um mínimo o caos da existência, aproveitar
ao máximo, sem qualquer medida, aquela oportunidade de produzir um exemplo. A
realidade, no entanto, geralmente é bem mais complicada do que um bom exemplo
deve ser.
É
talvez a lição mais interessante que pude tirar do Desonra, do Coetzee,
demorando algumas releituras a tomar nota. O protagonista, em sua arrogância de
sabido, disserta várias vezes a respeito do arquétipo do bode expiatório. Um
animal é colocado para o sacrifício para expurgar todos os males da comunidade,
sendo esse comportamento verificável em várias sociedades humanas. É difícil
não ver isso na fúria das pessoas contra acusados de qualquer coisa, principalmente
da transgressão-tabu do zeitgeist: não é só aquele crime que está produzindo
aquela fúria, e sim tudo que há de errado (ou genericamente mal) no mundo,
projetado no criminoso. Não é a pessoa, e nem mesmo o crime, e sim o Mal
inteiro sendo malhado ali. Daí a grandiosa cena do julgamento do protagonista
de seu cargo de professorzinho na Africa do Sul, o que deve ser o foda-se mais
bem composto de toda a literatura, sua indisposição em participar daquele circo
institucional, que priorizava o que toda instituição sempre prioriza, sua
própria reputação. Ele de fato estava sendo usado pro sacrifício, para dar as
mostras esgarçadas de um progresso na verdade intangível. Isso tudo, no
entanto, não quer dizer que ele não seja de fato culpado: a desmedida de quem
corrige não torna ninguém inocente. E o fato do culpado de fato ser culpado não
impede que outra injustiça esteja sendo cometida.
É
uma coisa até curiosamente desconversada pela conclusão do livro, a surpresa
final, que é o que achei mais marcante no romance e que discutirei daqui a
pouquinho. Para além da invasão de privacidade feita pela ex-esposa em entrar
no email de outra pessoa, outra pessoa que sequer divide mais sua vida com ela,
está a exposição de dois terceiros, uma garota de vinte anos que, sim,
realmente teve relações com um homem casado, mas que está no início de uma
carreira que pode de ser muito prejudicada pela exposição, e o amigo, cujo
único crime a ser exposto para o mundo foi a forma de fazer piada via mensagem
particular, sua forma de lidar com o que a vida lhe reservou (fazer piada de si
mesmo, naquela máxima de que rir de algo que te mete medo faz com que você
tenha menos medo). Se o caso exposto haveria de servir para muitos como exemplo
da luta para tornar o mundo menos machista, também serviria de lenha pra
fogueira dos infernos que se reserva no além-morte (ou mesmo em vida, para os
que se julgam ungidos dessa missão) para homossexuais, em lutas que são delineadas
em outros círculos (quadrangulares, pentecostais) bem diferentes de discussão de redes sociais.
Cada lado, inclusive o dos machistas e dos homofóbicos, consegue encontrar seus
respectivos culpados no escândalo do romance, uma das ótimas sacadas da trama.
A
sacada de base mais genial do livro, no entanto, foi a de situar a discussão
inteira no mundo profissional da publicidade, ou pelo menos ter como seu meio
de expressão as palavras de um publicitário. A atuação em redes sociais do
adulto comum (e provavelmente também a dos adolescentes) é a de publicitário de
si mesmo, fazendo todos os dias ou quase todos o login em nossa plataforma de
relações públicas para falarmos que está tudo bem, que estamos indo muito muito
bem; os que falam que estão mal ou que está tudo errado no geral aproveitam a
oportunidade para pavonear o quão bem eles conseguem expressar como as coisas
estão mal. Até quem diz a verdade está se vendendo como o cara que diz a
verdade: não há escapatória, todos as vias e palavras estão afetadas pelo meio.
É uma plataforma para se esculpir como perfeição, deixando de lado tudo que é
desagradável e o que não cabe. O risco principal, além de uma vida em paranoia
cercado de perfeitos gênios-em-tudo, é de acabar se acreditando naquela imagem
artificial, sacrificando tudo que fica no caminho. Não tenho dúvidas que a
ex-esposa acreditava no próprio blábláblá de que estava dando uma oportunidade ao
protagonista de amadurecimento; em público, sim, sob todos os xingamentos
imagináveis, melhor lugar pra refletir não há.
O
protagonista reconhece o próprio erro, como não poderia deixar de fazer, em uma
maneira meio em passant; sua preocupação principal, claro, está em sua
sobrevivência mental mais básica, e não em pedir desculpas repetidamente para
quem vai nunca cogitaria se sujar em pensar em ouvir. Sua imaturidade,
principalmente em casar com uma mulher que parece que só evidenciava
incompatibilidades fundamentais de personalidade, inclusive no campo sexual,
explode da pior forma possível, e essa reconstrução passa a ter de ser feita publicamente
porque foi para aí que foi arrastada, diante de gente para as quais ele é só um
nome, ou arquétipo.
A
coisa da AIDS, contudo, me soou estranha, no início. Tenho bastante aversão a
metáforas a respeito de doenças, por histórico próprio de minha família; as
diversas formas de finitude e suas imprevisibilidades são pra mim o indicativo
mais distinto que podemos ter que estamos sob o jugo de forças aleatórias e
insondáveis do universo. O narrador presta seu tributo ao clichê da questão, de
todo mundo desse meio intelectual que já leu o livrinho ótimo da Sontag sobre o
assunto, a tuberculose sendo poética no século dezenove, o câncer sendo
rancoroso no século XX, mas o negócio ficou meio entalado mesmo assim, parecendo
de início como único defeito de um livro que de tão bem feito chega a causar
espanto, tendo em vista o quão recente é seu assunto principal.
O
twist no aproximar do final da narrativa me pareceu uma forçada de barra na
dramaticidade que já estava mais que aguçada o bastante no decorrer do livro.
Para além da repetição básica da técnica do trauma arcaico anteriormente vista em
o Diário da Queda (o pessoal deixando o menino cair no livro anterior, e no
novo Walter deixando a travesti ser espancada) e a agressividade toda dos
comentários, o livro já estava um tanto carregado, não precisando daquela
dosagem a mais, e a ambiguidade do final me soando um tanto desequilibrada: se
o resultado do teste fosse negativo, para que tanta tensão?
Nas
páginas que provavelmente serão as mais finamente repenteadas da literatura
brasileira recente, a questão é colocada em aberto, mas a mera existência da
questão faria com que um dos possíveis resultados soasse improvável: se fosse
negativo, para que tanto crescendo e suspense? Soa a princípio um pouco fajuto.
A grande decisão que a garota deveria tomar só seria grande se fosse positivo.
Talvez fosse uma questão de decidir em de fato construir uma vida ao lado dele,
uma rejeição definitiva da possibilidade de se pintar como vítima da situação
inteira e sair pelo caminho mais fácil, um pacto real e definitivo com o
narrador. E todo aquele papo anterior sobre AIDS, todos aqueles detalhes,
seriam meio que à toa? A situação por si só do amigo e o vazamento das
mensagens dariam mérito a no máximo metade do espaço que foi gasto discutindo
especificidades. A dúvida inteira, ainda, dá um eco meio bizarro para a
conversa-zoeira entre os amigos, de decidir infectar a garota, ganhando uma
literalidade quase que de mau-gosto.
Pensando
um pouco mais, no entanto, não seria isso o que metaforicamente um
relacionamento amoroso profundo acarreta? De certa maneira, quando amamos e
temos nesse amor o convívio entranhado de subjetividades distintas ocorre certo
contágio mútuo (ainda que parcial) de personalidades, a forma como o outro
parece entrar em nossa pessoa? Mesmo nossos pensamentos mais particulares, a
pessoa aparece dando pitacos imaginários, pensamos sem esforço em como o outro
reagiria diante de alguma coisa nova que nos deparamos, ficando acompanhados
mesmos quando estamos sozinhos. Não daria para entender o período de superação
de um amor perdido como uma espécie de desintoxicação daquela pessoa, de nossa
subjetividade aprender a viver sem a substância fornecida pela outra
subjetividade? Nesse sentido, depois de digerir o livro por algumas horas, pude
entender melhor essa possibilidade do final do livro, até que me ocorreu outro caminho,
talvez mais engenhoso.
A
confusão de datas relativas a Walter pode ser falsa, ou falseada. Ele talvez
soubesse que o amigo teria se infectado somente após o contato com a ex-esposa
(contato que talvez nem tenha existido). Ela não saberia da doença do amigo? Teria
ficado calada por esse tempo inteiro? (não lembro desse detalhe, esse texto conta
com uma só leitura do livro). Os dois teriam ficado os quatro anos do casamento
sem qualquer sintoma? Parece possível, mas um pouco improvável. Seria eu o
único a sentir uma mudança na natureza dos acontecimentos da narrativa, nessa
reta última, em que de repente o encadeamento de vários acontecimentos super
específicos e intricados de repente se mostra como decisivo? Tudo deslizava num
vai-e-volta de ambientação complexa, um andamento titubeante, até que de
repente uma máquina de algumas engrenagens afiadas se revela como fundamental:
plot twist numa história que subsiste de recuperar/ruminar um passado complexo,
dissipado.
Assim,
esse caminho que me aparece como possível, o que o protagonista apresenta agora
em público como conclusão de sua defesa poderia ser, na verdade, nas
entrelinhas, com o fim em aberto que de outra forma me parece um pouco
artificioso e literário demais (eterno risco das narrativas de primeira
pessoa), uma espécie de reivindicação possível daquilo que eles, o narrador e
sua namorada, teriam perdido com essa exposição pública. Da mesma forma como o
jeito semi-BDSM que os dois consensualmente transavam e gozavam juntos não dizia
respeito a ninguém que não estivesse envolvido diretamente no ato, pois sabemos
que não era só o adultério o escândalo, a resposta daquela pergunta-bomba sendo
só deles seria uma forma dos dois terem de novo um mundo próprio, privativo,
singular, que quem fosse de fora poderia apenas especular de forma inútil e
infinita a respeito dos detalhes, em parâmetros que eles pudessem ter algum
controle, uma espécie de retorno distorcido à forma como as coisas já foram e
deviam ser.
sexta-feira, 5 de agosto de 2016
Ozick traduzida (trecho de conto)
Traduçãozinha rápida, pedaço de um conto ótimo que li ontem:
Aos vinte ele havia suportado a emoção aturdida de alguém que tem a sensação que foi separado para aspiração, para beleza, para a reverência, para alguma particularidade ainda não descoberta. Aos trinta ele acreditou que tudo aquilo tinha sido invencionice de sua imaginação de menino (exasperação ante o envelhecer não é em nenhum momento mais aguda e melancólica que aos trinta), mas ele ainda se maravilhava com suas energias, ele sabia que tinha um talento vulgar para a compaixão assim como, digamos, Sophie tinha talento, igualmente vulgar, para copiar paisagens; ele se viu, na verdade, como uma praça aberta, já bastante pisoteada, esperando ser tomada por uma conquista, por uma invasão de particularidades, por aquele raspar propositado que marcaria os azulejos como um lugar onde claramente algo aconteceu. Aos quarenta ele era ainda sem uma história - suas irmãs estavam tendo seus últimos bebês, seu pai seus primeiros derrames - e ele se tornou culpado e cínico a respeito de sua própria natureza, e começou a desprezar a si mesmo por ter colocado sua fé na possibilidade de um evento significativo, milagroso.
- Cynthia Ozick, A esposa do médico
[At twenty he had endured the stunned emotion of one who senses that he has been singled out for aspiration, for beauty, for awe, for some particularity not yet disclosed. At thirty he believed all that had been a contrivance of his boy's imagination (exasperation over growing old is at no time more acute or melancholy than at thirty), but he was still delighted by his energies, he knew he had a vulgar talent for compassion just as, say, Sophie had a talent, equally vulgar, for copying landscapes; he saw himself, in fact, as an open plaza, already well-trodden, waiting to be overcome by a conquest, by an invasion of particularities, by those purposeful scrapings that would mark the tiles as a place where plainly something has happened. At forty he was still without a history - his sisters were having their last babies, his father his first strokes - and he became guilty and cynical about his own nature, and began to despise himself because he had put his faith in the possibility of significant, of miraculous, event.]
segunda-feira, 25 de julho de 2016
Norman Rush - Mortals - efeitos de consciência
É
uma equação esdrúxula, mas a melhor forma de resumir o Norman Rush para mim é
David Foster Wallace + formação clássica + Dostoievski. Esdrúxula, como toda
equação que trata de literatura, e também por tomar como base interpretativa um
autor que é mais jovem do que o discutido, mas ela ajuda a entender um pouco do
fascínio que o livro alcança.
Ele
é David Foster Wallace no ímpeto que também tem de fazer um relato preciso dos
movimentos de consciência de um personagem. Se a defesa clássica da prosa de
ficção sobre outros meios mais rápidos de transmissão de narrativas (cinema,
quadrinhos, etc) é que apenas ela tem o poder de naturalizar a consciência de
outra pessoa, colocando os pensamentos em meio à ação sem sobrepesar o
andamento da história, o Norman Rush sem dúvida seria um dos cúmulos desse
aspecto supostamente intrínseco à nossa desvalorizada arte. Tudo que ocorre no
livro é mediado (e por vezes interrompido em sua continuação) pela consciência
meticulosa e obsessiva do protagonista, a ponto de que os acontecimentos (que
são até bastante dramáticos e envolventes) parecem que são apenas o
acompanhamento do principal que é a subjetividade do personagem e sua
capacidade reflexiva.
Por mais inteiros que pareçamos por fora (em
geral para pessoas que não nos conhecem bem), somos frequentemente uma bagunça
por dentro, e mesmo as nossas certezas mais aparentemente sólidas são
alcançadas por contradições rapidamente resolvidas intra-cranianamente na
medida em que nos deparamos com novas informações. Nossos raciocínios não
alcançam as conclusões com as quais vivemos e agimos na vida de maneira
imediata, e mesmo essas conclusões que parecem sólidas feito pedra desaparecem até
mesmo sendo substituídas pelo seu oposto ante uma situação nova: a máxima clássica
de que o personagem bem-feito é aquele capaz de surpreender o leitor é apenas
xerox da realidade que somos capazes de surpreender a nós mesmos com nossas próprias
reações. Um trauma superado ressurge como se estivéssemos na estaca zero, nos
vemos mais covardes (ou quem sabe mais corajosos) do que esperávamos em certo
momento urgente, somos incapazes de seguir com planos a princípio perfeitamente
traçados.
O
raciocínio de Ray Finch, protagonista do livro, é construído aos olhos do
leitor como num programa de tutorial de como-se-faz, como-se-é-humano, numa
naturalidade que o que termina por surpreender é como isso figura como
surpreendente, estranho sendo que os outros livros não sejam assim. Um exemplo
micro disso é o momento em que ele está diante do novo chefe babaca dele,
sintetizado na frase “He hated Boyle, but not really”; os manuais de
como-fazer-literatura provavelmente corrigiriam isto por algo do tipo “ele
quase odiava Boyle”; aparentemente muito melhor que duas formulações em que a
segunda efetivamente corrige a primeira. Uma construção o mais precisa possível
a princípio seria melhor do que duas em luta, mas não é apenas o efeito (de
consciência) que é valoroso, sua cópia de como funciona a cabeça de uma pessoa:
o conteúdo resultante é também diferente. Naquele centésimo-de-segundo antes de
vir o próximo pensamento, o protagonista estava realmente com aquela conclusão
a respeito de seu chefe. O livro é inteiro assim (geralmente em frases bem mais
alongadas), feito de percepções que se acumulam e se substituem sem nunca
ficarem confusas, e sim uma precisão ao mesmo tempo absoluta e borrada, criando
uma proximidade quase estranha com a realidade.
Quanto
à formação clássica, é na verdade uma expressão incorreta, já que não se trata
das grandes figuras da antiguidade (Cícero, etc), e sim uma erudição
naturalizada relativa à tradição literária da língua inglesa. A diferença com
Foster Wallace, que de fato tinha toda essa formação gigantesca que a nós
(mais) mortais parece francamente inatingível, é que ele trazia o mundo
midiático como tema constante de sua obra, enquanto o Norman Rush (seu
personagem, mas, convenhamos, claramente também o autor) tem todo o
estranhamento despudorado com o ““”emburrecimento“”” (aspas entre aspas) do
mundo contemporâneo que se espera de um estereótipo de intelectual, como uma
lamentação de que o vocabulário comum atual é supostamente menor do que o nos
anos 1950 (para mencionar uma das muitas lamúrias ocasionais de Ray).
No
entanto, o efeito dessa formação sólida do autor, reproduzida no protagonista,
é um texto desavergonhadamente inteligentíssimo, carregando sua cultura como
quem carrega aspectos de sua pessoa que são naturais (e não longamente
adquiridos), não hesitando em exibir um dos efeitos que a leitura contínua e
compulsiva produz na mente de quem embarca nessa jornada. Parece que o francês
tem uma expressão “mobiliar sua mente” no que diz respeito ao hábito de leitura,
quando me parece mais próximo do real é uma espécie de povoamento fantasmático da
consciência, em que figuras literárias que lhe causaram impacto como que
aparecem de repente em meio aos seus pensamentos, seja para ecoar de novo uma
frase que tenha ficado por um tempo ou permanentemente (às vezes nos lançando
numa busca de origem, “quem mesmo que falou isso?”), ou para dar uma opinião
(imaginária, claro, reconstituída pelas impressões do próprio leitor, mas que
ressoa como inteiramente verídica) sobre o que se tem diante de si, não apenas
em momentos de fruição de obras de arte.
Percebemo-nos
habitando aquele espaço a princípio da burrice, de ficar pensando várias vezes
“esse cara é mesmo muito inteligente”; é claro que existem várias inteligências
diferentes dentro do conceito uno de inteligência, seja rapidez de raciocínio,
erudição (até os burros, por insistência, conseguem algum acúmulo), aptidões
múltiplas e nada-complementares. Mas com o tempo nos vemos voltando (e até
ansiando pela experiência desse retorno) de simplesmente nos admirarmos com a
capacidade (ou conquista) incomum e improvável de certas obras, em que de
repente de novo tudo que concerne a mente parece ser uma questão classificável
e que estamos diante de alguém extraordinário como que naturalmente.
Já
a parte Dostoievski, vem muito da constatação do Foster Wallace da disposição
desabrida do russo de fazer sua obra um palco para discussões detidas e do mais
alto nível de seriedade. Qualquer leitor/espectador mais interessado vai se
dando conta que a lacuna é parte fundamental de qualquer obra de arte; não só
não é possível falar tudo, como é nada desejável falar o máximo. O que muitos
artistas optam por fazer a partir daí é de certa forma contornar de várias
formas suas questões principais: uma tristeza é expressada por silêncios, ou
pelo cenário, em vez de jogada na mesa, o texto se alongando como que em órbita
em relação a um centro tornado tabu. O pessoal do new-criticism chamava isso de
objetivo-correlativo, se me lembro corretamente: não é possível falar de amor,
portanto falamos de primavera, flores, etcéteras. O risco de ignorar essa boa
regra é sair da ineficácia (“que tédio, outra história que metaforiza pela
tempestade as inquietações humanas”) e cair no ridículo ou ensaístico/analítico,
transformar a narrativa em um tratado descritivo pretensamente minucioso das
emoções humanas.
Dostoievski
não tinha medo de encenar longas discussões a respeito dos tópicos que
considerava importantíssimos, espichar monólogos que buscavam expressar com
exatidão exaustiva o estado de espírito de seus personagens, exatamente o quão
comovidos ou destruídos eles estavam pelo mundo circundante. A mesma coisa com
o Rush. Nunca li um livro tão disposto a falar longamente do amor e da paixão,
sexual e de afinidades, aquela intimidade aprofundada que se desenvolve como se
fosse um pedaço sempre tateável da subjetividade de uma pessoa. Seu primeiro
romance, Mating, um relacionamento que se inicia; o Mortals, um relacionamento
já de muitos anos, enfrentando uma crise. Não é apenas nesse sentido: os
romances tem ambientação em Botswana, com os personagens americanos descrentes
e mesmo assim encantados com o lugar, e acaba por passar por discussões a
respeito de geopolítica, cultura local, papel dos Estados Unidos no mundo, sem
que (como parece mais comum) sejam coisas mencionadas apenas para constarem como
existentes e serem rapidamente colocadas de lado, para o romance tratar do que
realmente importa, a narrativa e o enlace emocional.
A
naturalidade com que o livro desenvolve essas três frentes, a minúcia da
consciência, a gigantesca carga cultural e a importância do assunto tratado, é
absolutamente espantosa. Parece contemporaneamente mais seguro apostar no
ressalto do que há de artifício em arte, narrar apenas depois de avisar várias
vezes que há muito que não será narrado, a nova forma de erguer a cabeça é
abaixar a cabeça. Mortals chega a ser quase um livro do século dezenove em sua
pretensa solidez. Tem seu quê de excessivo e digressivo, trechos inteiros que
poderiam ser cortados sem prejuízo para o todo (meia página falando mal da
transformação/consagração de Joyce de escritor realista em puzzlemaker,
pontuada por um singelo “fuck him”); pela recepção crítica que teve, parece que
seu livro mais recente, Subtle Bodies, mais curtinho, sofre justamente por
certo desajuste de velocidade: demora demais para construir seu mundo sem ter o
espaço e demora necessários para o acúmulo e o efeito de resolução. Lerei.
Norman Rush para mim está na categoria de grandeza que até os fracassos
interessam.
J.G.
Ballard diz na introdução de seus contos reunidos que lamenta a queda de status
que a short story sofreu durante seu tempo de vida: no início de carreira eram
várias as revistas literárias (de ficção científica ou não) que buscavam novos
talentos e conseguiam vendagem para se manter, enquanto hoje parece que o campo
virou quase todo para os romancistas. Ele fala que acha isso curioso, pois
conhece vários contos perfeitos e nenhum romance perfeito. Já eu acho que está justamente
aí um dos segredos dessa predominância: essa imperfeição é como um efeito de
realidade, em que nem tudo cabe a uma máquina central de sentido, encaixado com
exatidão: há sobras, excessos, espaços em branco que não são meticulosamente
esculpidos por um texto-moldura. Certo aspecto intangível de inacabado, do
livro que de certa maneira poderia continuar e não continua, o livro que
poderia calar e se alonga. Claro, muito difícil de definir qual a medida disso
em que realmente entra no espaço do erro e da imperícia, mas essa dificuldade
de definição é também indício de que algo que é real foi capturado.
---
Trechinho,
traduzido por este que vos posta:
It never changed for him, seeing
her again after a day’s separation, or even less. He felt a flowing, objectless
gratitude so strong it weakened him. He wanted her touch. It was permanent with
him. She put her hands on him and slipped one hand through the unbuttoned top
of his shirt. She was wearing a plain white sundress and she was barefoot. The
shape of her heavy hair against the light and the scent of it as he put his
face into her hair were perfections, were absolute things. He was forty-eight.
She was thirty-eight. A pleasure he had was catching flashes of surprise in
people’s expressions when she told her age, which she was always truthful
about. He often had the satisfaction of seeing people look at him, obviously
wondering what it was about him that they weren’t seeing that made it
reasonable for a woman of this quality to be with him, be his. He had always
looked his exact age. And he also liked seeing them being given pause by
someone at her level of physical beauty dealing with people so much more
nicely than she should be, on their past experience of great beauties, which
she was, which she was. These were instantaneous moments, but real. She was a
democrat, a spiritual democrat. And then with women, and gay men too,
sometimes, he would get the moment when they tried subtly to ascertain if they
could possibly be right in their first impression that Iris was wearing hardly
any makeup. There was a way they widened their eyes briefly and then focused
again. Iris wore next to no makeup.
He wanted the touch of her breath
on his throat. When they embraced after being
separate that was what he wanted
first.
“You are so beautiful,” she said.
“So say we all,” he said, being wry.
A line came to him, I
am the mirror you breathe on. It wasn’t quite right, though. If he wrote
poetry what he would want would be a line that united holding a mirror up to
the mouth and nose of a particular beloved to see if she was still alive with the mirror being the fixed
register of her personal beauty. Could the line be I
am the mirror your breath is for? He
thought. No because it’s slightly sinister. No because it’s stupid. This was
why genius would be so handy if you had it. Iris had no real appreciation of
how beautiful she was. She was sealed off from that by her past, complications
in her past, and he lacked the genius to strike through and say Look what you
are! Look! and have her believe it.
Nunca mudava para ele, vê-la de novo depois da separação de
um dia, ou até menos. Ele sentia uma gratidão fluente e desobjetificada tão
forte que chegava a enfraquecê-lo. Ele queria o toque dela. Era permanente com
ele. Ela colocou suas mãos nele e deslizou uma mão pelo topo desabotoado de sua
camisa. Ela estava de vestidinho branco e sem estampas e ela estava descalça. A
forma de seu cabelo pesado contra a luz e a fragrância quando ele colocava seu
rosto no dela eram perfeições, eram coisas absolutas. Ele tinha quarenta e oito
anos. Ela tinha trinta e oito. Um prazer que ele tinha era capturar flashes de
surpresa nas expressões das pessoas quando ela dizia sua idade, em que ela
nunca mentia. Ele frequentemente tinha a satisfação de ver pessoas olharem para
ele, obviamente ponderando o que ele teria que eles não estariam vendo para
tornar razoável que uma mulher dessa qualidade ficasse com ele, fosse dele. Ele
sempre teve a aparência exata de sua idade. E ele também gostava de
vê-los pausar por estarem diante de alguém em seu nível de beleza física
lidando com pessoas de maneira muito mais agradável do que ela deveria fazer,
em suas experiências passadas com grandes belezas, que ela era, que ela era.
Esses eram momentos instantâneos, mas reais. Ela era uma democrata, uma
democrata espiritual. E então com mulheres, e homens gays também, ele teria o
momento em que eles sutilmente tentariam averiguar se era possível que eles poderiam
ter tido razão em sua primeira impressão que Iris não estava usando quase
nenhuma maquiagem. Existia um jeito em que eles alargavam seus olhos brevemente
e então focalizavam de novo. Iris não usava quase nenhuma maquiagem.
Ele queria o toque de seu respirar em sua garganta. Quando
eles abraçavam depois de ficarem separados era isso que ele queria primeiro.
“Você é tão belo” ela falou
“É o que dizemos todos” ele falou, sendo irônico
Uma frase veio a ele eu sou o espelho em que você respira.
Não estava bem certa, no entanto. Se ele escrevesse poesia o que ele ia querer
era uma linha que unisse o segurar do espelho na boca e nariz de uma pessoa
amada em particular para ver se ela ainda estava viva com o espelho sendo o registro fixo de sua
beleza pessoal. Poderia a frase ser Eu sou o espelho para qual serve seu
respirar? Ele pensou. Não porque é ligeiramente sinistro. Não porque é
idiota. Era por isso que genialidade seria tão útil se a você tivesse. Iris não
tinha apreciação real de como ela era bela. Ela foi isolada disso pelo seu
passado, complicações de seu passado, e a ele faltava a genialidade para
adentrar com um impacto e dizer Olhe o que você é! Olhe! e vê-la acreditar.
Assinar:
Postagens (Atom)