O cadáver de um gato pode ser apreendido tanto como a coisa
mais distante quanto a coisa mais próxima que se pode ter de um gato. A morte é
tanto a definição quanto a anulação da vida, todo ser vivo é mortal. A escrita
consagra e encerra os assuntos por ela discutidos, por mais que se faça um
parágrafo final protocolar convidando a discussões posteriores. Uma membrana
cria a separação e mantém o contato entre duas substâncias diferentes,
vizinhas.
O fascínio racionalista do ser humano encontra em poucas outras
coisas além do quebra-cabeça um exercício que esteja à altura de seus delírios
de dominação. Milhares de pequenos pedaços que por si só dizem nada ou quase
nada, um pouco de uma curva de um queixo erguido para retrato demorado, o
espaço escuro entre uma maçã e uma pera em cima de uma mesa de um anônimo, um
branco indefinido que pode ser tanto parede quanto paisagem, mas com sagacidade
e paciência (os mais pacientes afirmariam que a paciência seria a principal
inteligência, ignorando a rima irritante) é possível recuperar depois de várias
horas a totalidade da imagem e do sentido. É a capacidade humana concentrada em
seu ímpeto incansável de domar o universo: podemos colocar o mundo sob nosso
controle, se nos esforçarmos no sentido certo.
O universo, sim, cede alguns centímetros, talvez apenas para
nos entreter, ou se entreter, ou, muito mais provável, indiferentemente,
sabendo ou não que seu principal, o improvável, o irrazoável, o caos, não está
a alcance do nosso controle. As questões que ficam sem solução não por falta de
inteligência, ou esforço, ou recursos, e sim apenas por não ser o tipo de
questão que tenha resposta, ou resposta recuperável, essas não são alvo de
discussão ou deliberação razoável, está nas mãos de um Deus que cada vez mais
convence menos pessoas de sua existência.
O cerne principal do Noite dentro da Noite me parece ser
esse. Uma subversão profunda e estrutural das expectativas da lisura de um
entendimento pleno. Narrativas de origem
pessoal, de resistência política, de espionagem, como quase todas os outros
gêneros, partem do princípio de um movimento da ignorância para o conhecimento,
do errado para o certo. A vida, no entanto, não propicia esse movimento com a
naturalidade das narrativas, e talvez seja essa a justificativa da existência
dessas histórias, a capacidade que têm de em parte acalmar temporariamente
esses anseios sem correspondência. O alemão que apesar de sua aparente vida de
homem comum NA VERDADE trabalha para o nazismo, o garoto que apesar de ter sido
criado para tomar como normal todas as injustiças sociais de seu mundo NA
VERDADE entende o sistema capitalista e resolve combatê-lo, o homem que segue
sua vida estudantil e profissional dentro das expectativas NA VERDADE
precisaria desvendar vários segredos a respeito de seu passado para recuperar
seu Eu Legítimo. A normalidade anterior, errada, na verdade seria suplantada
apenas para a substituição de outra, talvez mais correta ou bonita, mas ainda
assim dotada de uma estabilidade de entendimento perfeito.
O instrumento que temos a nossa disposição para construir
uma imagem de mundo que nos possibilita a sobrevivência, essa víscera em forma
de noz (em uma das vívidas e brilhantes expressões do romance), até consegue
enganar por longos períodos no que diz respeito sua capacidade de captar a realidade
de maneira completa. Afinal, é o cérebro que conta e ouve a história, o
enganador e o enganado. É ele que rege e depois entende por normal e razoável o
mundo que o ser humano criou para sua própria espécie. Que produz esquecimentos
aparentemente sem qualquer critério, a ponto de esquecermos o que esquecemos.
Dependurado por inteiro nesse órgão frágil, falho, o mundo na verdade é bem
mais movediço do que pode parecer.
O romance, claro, evoca temas condizentes com essa estrutura
instável para sustentar sua complexa construção de realidade. É o que requer a
empreitada literária, um ponto fixo para determinar as movimentações violentas
do resto do livro. Um acidente em que o garoto bate a cabeça, a epilepsia, o
trauma, as torturas. O estabelecimento de um estrato onírico subjacente aos
acontecimentos, uma liberdade unidirecional, só para baixo, mantém um tom de um
pesadelo permanente. A ambientação do pântano, o terreno em que nem mesmo o
chão é confiável, sendo alternadamente terra ou lama ou água, ou barranco de
queda perigosa, numa umidade em que o próprio ar parece água, nunca vem a ser descritivamente
substituída por outras quando a história carrega os personagens para outros
lugares como o Rio de Janeiro, ou Buenos Aires; a única exceção vívida sendo a
surrealista neve vermelha de Medianeira. Os porões de tortura, literais ou
figurativos (a violência a céu aberto, testemunhas caladas pelo medo da morte ou
pela morte), suscitam também outro grau de incerteza, a das confissões
arrancadas a alicate, a princípio entendidas como verdades absolutas
desenterradas que em vez disso são qualquer fala que faça com que a tortura
acabe, diferentes sessões com um mesmo aprisionado revelando verdades diferentes,
desesperadas, sondagens para ver quais seriam as palavras mágicas para qualquer
libertação. A única palavra máxima para tratar o momento, no entanto, seria
inútil: azar. Azar de nascer onde ter nascido, de ter desenvolvido alguma
consciência do absurdo do mundo e, sobretudo, azar de ter sido capturado. Azar
de se ver cercado ou refém dessa criatura mesquinha, violenta e cruel que é o
ser humano.
Com essas complicadas bases de realidade fundando o romance,
é permitido ao lirismo espesso, barroco e apoteótico da narrativa uma
constância maximalista a princípio insustentável, em que o eventual
fraquejamento de um ou outro exagero que não cabe (diferente de todos os outros
exageros que cabem e carregam mais adiante a força do romance) não compromete um
equilíbrio sempre posto em pontos de desequilíbrio, e tampouco cansa a dicção
maximalista, uma vez que ela não opera em uma normalidade que busca qualquer
coisa próxima com o cotidiano. É um universo pútrido, tanto no aspecto físico e
fisiológico quanto no moral-histórico, a ambientação da ditadura
inteligentemente desenvolvida não como um passado a-ser–compreendido-para-ser-superado
e sim como momento de mero desnudamento das forças sempre presentes na
sociedade brasileira, ou mesmo latino-americana: levando em consideração a
atuação das polícias da maior parte do país, nas suas tentativas desastrosas de
conter a violência urbana de um dos países mais perigosos do planeta, o slogan
“tortura nunca mais” foi criado e saudado como superação em uma sociedade em
que se tortura ainda mais do que na época ditatorial.
O lirismo do livro é um da textura, essa característica de
descrição bem mais difícil de apreender do que linha ou cor, o que mais se
perde de um quadro ao vê-lo em reprodução do que na vida real (a representação
correspondendo a muito menos do que o representado). Característica mais pertencente
ao tátil do que ao visual, uma espécie de sensação cega. Que exige, ou
valoriza, a presença, a experiência que não seja a partir do reportado. E mesmo
o contato direto não é suficiente para estabelecer certezas, servindo apenas de
garantida de uma não-diminuição dos sucessivos impactos, para os quais é impossível
qualquer tipo de preparo mínimo.
Fica claro logo nas primeiras páginas que o romance não quer
menos do que se inscrever na minguada listagem de obras primas da literatura
brasileira, Cronica da casa assassinada, Grande sertão: veredas, Dom casmurro,
A hora da estrela, etc. Todos os xingamentos externos naturais a essa ambição provavelmente
já foram pronunciados, provavelmente de antemão, e serão repetidos por muito
tempo ainda, como pretensioso, artificioso, metido, “se acha demais”, etc,
assim como já foram arremessados contra os livros de lugar já assegurado no
cânone. O erro do autor, nessa visão de ódio automático ao contemporâneo, é
querer se igualar aos gigantes, como se alguém alcançasse qualquer coisa
extraordinária sem antes mirar alto, e o erro fosse vergonhoso a ponto de
invalidar a tentativa. Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron, em toda sua
radical originalidade, mira altíssimo, em um alvo que a gente só descobre que
existia por ter sido acertado. É um romance extraordinário, grandioso, um
monumento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário