B7
Ele viu o cavalo comendo a torre. Percebeu
então que algo não devia estar dando certo. Ficou chocado com aquilo
acontecendo bem na sua frente. Presenciar um desastre tão de perto. Não é todo
dia. Ali. Na sua frente.
Não
era tão perto assim. Não conseguiria alcançá-los se tentasse. Mas sua posição
permitiu que testemunhasse tudo. Tudinho.
Talvez
assim ficasse acordado. Era o fim daquela enrolação infinita. Melhor assim.
Mesmo custando um companheiro seu. Não aguentava mais aquele vai-e-volta sem
propósito. Uma enrolação sem fim. Indo de um lado pro outro à toa. Só ocupando
espaço. Encheção de saco. Imaginava que era errado pensar assim. Que não
deveria pensar assim. Mas pensava.
Em
seguida o cavalo foi pego pela rainha. Sumariamente. Sem chances. E ele viu
tudo. Dois notáveis eventos consecutivos. Agora que a coisa anda de vez. Pelo
menos foi o que pensou.
E
não há ninguém para pegar a rainha depois. Seria coisa demais. Três assim? Não
acontece. Talvez seja errado desejar mais. Mas não aguentava mais o marasmo.
Mexeção sem fim. Indo pra lugar nenhum. Podia ser que havia algo por trás disso
tudo. Algum plano aí. Podia ser. Mas ele não via nada. Não sabia de nada. Sua
posição era desprivilegiada. Nada passava por ele. Só ficava parado. Olhando.
Que
pelo menos tivesse algo pra olhar.
Um
de seus colegas mais imediatos avançou para proteger a rainha. Bem ali do lado.
Agora qualquer coisa que acontecesse algo com ela o troco viria na hora. E ele
poderia ver tudo. Mas o mais provável era que nada acontecesse. O que não
impedia que ele ficasse torcendo.
Ele
ficou pensando na rainha. Que poder impressionante. Tudo que ela faz deve ser
muito bem pensado. Seu peso é enorme. Como consegue alcançar quase qualquer
coisa. Como deve estar sempre sob cuidados. Protegida por outros menos
importantes. Claro. Depois dela só há menos importantes. Não só ele e seu
colega imediato. Não. Eles estão abaixo de tudo. Até um cavalo e uma torre
estão abaixo da rainha. Tudo está abaixo dela.
Isso
não contando o rei. Claro. Mas ele não conta. Não faz nada. Só fica lá fugindo.
A rainha é quem faz tudo. Ou ao menos quem pode tudo. É um orgulho simplesmente
estar perto dela. Seria pra ele. Se tivesse sido ele o protetor.
A
próxima ação ele só percebe por uns vultos. Algo no cenário se modificou. Algo
sutil. Longe demais dele. Fora do alcance de sua visão. Certamente alguma coisa
mudou. Não saberia dizer o quê. E não lhe informam o quê. Pra ele ficou na
mesma. Como se não tivessem feito nada.
Ele
sabe que fizeram alguma coisa. Só julgam que para ele não faz diferença. Talvez
não faça. Mas talvez faça. Pode ser por causa disso que ele se dê mal no fim.
Mas não sabe. Não vê e não lhe contam.
Não
sente medo. Sente frustração.
Um
bispo se mexe. Atravessa larga distância. Passa por vários inimigos. Não causa
dano algum. Nada de novo.
Sentia
medo. Relutância. Mas era como uma camada por cima de uma grande empolgação
interior. Uma forte vontade de participar. Uma possível brutalidade era uma
sugestão menos forte que a glória certa prometida. Era isto o principal.
Qualquer coisa que depois viesse viria por cima. Sem afetar essa fundação.
Vinha, empilhava e, sim, ficava, mas sem parecer que fosse comprometer o
principal.
Não
que tivesse escolha. Estar ali ou não. Não nessa questão. Era o que era e ponto
final. Mas ainda sim no início ele via algum ideal ali. Ou pelo menos algum
motivo. Alguma motivação.
O
comprometimento da base veio depois. O tremor do medo se transformou em um
tremor de inquietação. Já não aguentava mais a mesma pasmaceira. A repetição.
Parecia esperar por algo desconhecido. A demora era pior por essa indefinição.
Na sua imaginação ela se estendia até além do horizonte. Até lá, tudo parado. E
a inquietação se transformando em um tédio que atravessava ossos.
Uma
torre inimiga se aproximou. Ou uma rainha. Ou alguém como ele. Só deu pra ver o
tipo de movimentação. Quem realizou, não. Nem quis saber.
Talvez
pudesse acompanhar melhor os acontecimentos. Isso se não fosse aquele tédio e
desinteresse para com ele. Aquela imobilidade imposta. Aquele isolamento
irritante. Ficar parado ali só olhando o chão. O pequeno espaço ao qual ele foi
designado. Permanentemente, parece. Se o solo fosse da mesma cor que seu corpo
talvez já tivesse começado a se fundir. E quando fosse convocado não teria mais
como atender às ordens. Excesso de espera. Grudado no chão, não dá, desculpe.
Riu
um pouco de si próprio. Uma imaginação à solta tem seus perigos. Já estava
viajando. Mas também. Ia fazer o quê? Perto dele só havia um cavalo. E nem bloqueado
por ele o maldito estava. Pra piorar ele era o único que não atrapalhava o de
trás, dizia para si mesmo. Qualquer coisa é só passar por cima. Um total
inútil. Não vale nada. Que morresse também, o maldito. Mesmo sendo o último que
sobrava ali. Que morresse também.
Não
era o último cavalo. O inimigo acabou de mostrar isso. Era um recuo, mas de tal
forma que agora ele conseguia enxergar melhor. Antes, não via. Inimigos
covardes. Ou não, talvez houvesse alguma ideia por trás.
Era
uma merda. Não sabia de nada. Ficava lá sem saber de nada. Se bobear, ainda
tinha um terceiro cavalo sobrando sem ele saber. Que todos fossem pro inferno.
Ele não se importava mais. De que adianta?
Aliás,
qual é o propósito disso tudo? Para que estavam todos ali? Para que que ele
estava ali? Para que toda essa disputa? Seria realmente necessária? Talvez nem
precisasse estar ali...
Era
melhor não pensar nessas coisas. Não servia de nada. Mesmo se concluísse que
aquilo era errado. Que não deveriam estar fazendo aquilo. Teria que continuar
de qualquer jeito. Não havia escolha.
Pois
que fosse um bom espetáculo. Muita ação, muitas mortes ali na sua frente. Tudo
rápido. Se não há sentido, que haja sangue.
Sua
crueldade provinha da frustração daquele marasmo alienado. Não é preciso que
ele perceba ou conclua isso e nem que seja com essas palavras para que seja
verdade. Sente o tédio e sofre a alienação. Nesse fracasso ele busca alguma
saída. O desinteresse com o qual agem com ele é contagioso e revertido. Ele
passa a se importar pouco com o todo. É claro que sentiria medo de expressar
abertamente essas suas vontades. Provavelmente negaria tudo com veemência caso
fosse confrontado.
Não
que fossem perguntar.
Um
conhecimento superior não lhe era impossível. Ele até pressentia de forma vaga
aspectos da realidade que lhe eram desconhecidos. Complexidades ocultas. As
milhares de possibilidades. Mais do que o número de átomos do universo. Mas
mesmo assim... As possibilidades não eram dele. Ele não importava. A vista de
cima talvez fosse interessante. De onde estava é que não era. Ele era
dispensável. Não tinha voz. Nunca teria.
Sentia
que sua pequenez era tamanha que nem se por algum motivo buscassem seu ponto de
vista realmente lhe seria dada a voz.
Seu
colega imediato mais próximo avançou dois espaços. Um salto. Como se tivesse se
atirado adiante. Para o nada. Para nada.
Ele
se irritou com aquilo. Mesmo de longe. Não via motivo. Não havia nada lá na
frente pra ele fazer. Nada para ele proteger. Nada para ele atacar. Nada. Não
havia propósito. Era uma coisa sem razão. Era só para se mostrar. Mostrar que
pode. Olha, olha só o que eu faço! Uma imbecilidade. Poder, qualquer um pode.
Ele mesmo pode. Os outros todos podem. Não é por isso que precisa fazer. É por
merdas assim que se bota tudo a perder.
Talvez
essa afobação fosse para chegar logo no fim do outro lado. A última linha. Ele
mesmo já tinha ouvido essa conversa várias vezes. Chegando ele ou um de seus
semelhantes no ponto mais longe haveria uma promoção. Poderia virar cavalo,
bispo, torre. Rainha, até. Diziam que quase sempre dava rainha. Mais uma rainha
no time. Outra força avassaladora. Não sabia como seria a transformação (e no
caso da rainha, quase não queria saber). Nem sabia se era verdade. Todos
falavam nisso e ninguém confirmava se era verdade.
Mas
talvez fosse. E talvez fosse isso que aquele seu colega afobado queria. Mas era
muito longe e o caminho nem estava livre de inimigos. Impossível. Impossível
que fosse verdade e impossível que ele chegasse lá. Era só um babaca, mesmo. Um
grande babaca.
O
colega que havia avançado foi pego pelo inimigo. Um bispo veio e tomou seu
lugar. Fez com que deixasse de existir. Saiu de cena sem deixar mancha nem
cheiro. Nem mesmo uma mínima marca no chão de onde desaparecera.
Sua
reação inicial foi de comemoração. Parecia uma punição adequada àquela
estupidez anterior. Uma vingança invisível. Como se ele mesmo fosse quem
tivesse designado aquilo para acontecer. O responsável distante. Quem assinou
embaixo. Isso, durante.
Depois,
outro gosto veio à tona. Uma força por detrás daquilo. Atravessando cortinas
até chegar a ele. A limpeza da brutalidade. A eficiência e rapidez. A
inconsequência. A leveza na irreversibilidade. Como se fosse fácil. Talvez
fosse.
Como
se não custasse nada.
E
poderia ter sido com ele.
O
bispo leva a dele com a torre. O mesmo que matou seu colega agora se junta a
ele. Se é que não ficam separados também quando passam pro outro lado, inimigos
eternos.
Não
era em metafísicas que ele pensava agora. Sua preocupação era com as coisas
mais palpáveis. Agora percebia melhor tudo. Ou talvez parte do todo. E não se
parabenizava por isso. Sabia que até alguém ainda mais burro entenderia. E se
ele mesmo não fosse tão burro, pensou, já teria percebido antes.
Seu
colega tinha sido isca. Eles sabiam o que aconteceria com o coitado.
Lançaram-no cientes disso. Seria um sacrifício necessário. Cede-se um pedaço
para abocanhar outro maior. Um bispo faz mais falta do que seu colega. Fazia
mais falta do que ele. O saldo era positivo. Uma transação lucrativa.
Foi
assim que o colega foi. Com um monte de esperanças em cima dele. Torcendo para
que desse certo. Para que ele morresse. Muito produtivo. Sua morte fazia
funcionar o plano.
E
poderia ter sido com ele. Ele também avançaria confiante. Sem saber de nada.
Certamente seu colega sequer suspeitava. Os outros que nem ele também não.
Talvez
as torres soubessem. Ou a torre que restava, pelo menos. Talvez até os cavalos
soubessem. Ou o cavalo. O que sobrasse. Talvez todos soubessem. Só ele que não.
Agora, não mais.
Parte
de si que agora sabia ansiava pela ignorância de antes. Se a verdade era essa
talvez fosse melhor não entender. Já não sentia o tédio e o ressentimento. Só a
raiva, diferente da raiva que sentia antes. Era um outro amargor.
O
frio que o trespassou não ia embora. Como é que algo ao mesmo tempo atravessa e
fica? Como que eles podem fazem isso? Será que não há hesitação? Eles mandam-no
à morte como se fosse nada? Certamente com ele seria a mesma coisa. É só aparecer
a oportunidade. Seriam os inimigos assim também? Não lembrava disso ter
acontecido do outro lado. Uma sucessão assim. Um sacrifício parecido. Talvez
eles fossem os corretos da disputa. Certamente esse era um bom indício, não
deixar seus próprios morrerem desse jeito. Claro que muitos acabavam mortos de
qualquer jeito, mas nenhum assim. De propósito.
Ele
viu os outros decidirem mover o cavalo. Não sabia o porquê. Uma estratégia
complexa, um avanço sem propósito, ou talvez outra coisa. Sem dúvida não era
para alguma armadilha omo a que há pouco matou seu colega. Eles não fariam
isso. Nunca fizeram. Muito menos começariam agora. Ainda mais com um cavalo.
Ele
continuou parado. Felizmente. Agora torcia para que não o escolhessem. Melhor
ficar parado ali. Mesmo que mofasse. Mesmo que crescesse raízes. Que grudasse
pra sempre no chão. Que não fizesse nada. Que fossem os outros os sacrificados.
Nem saberia dizer quem tinha avançado dessa vez. Só se concentrou em si mesmo.
Relaxou por completo ao ver que continuaria parado. Por enquanto estaria a
salvo. Seria assim até o final? Nessa agonia? Que acabasse logo, então.
Vitória, derrota. De qualquer jeito.
A
rainha está morta. De alguma forma isso aconteceu. De algum jeito. Não estava
prestando atenção, olhando pra si mesmo. E ela não estava mais lá depois que se
deu conta. Mas tinha sido agora. Tinha certeza. Não tem como algo assim ter
acontecido antes e ele não ter percebido.
Eis
todos os detalhes do começo da derrota. Foi o que concluiu. Derrota. Sim. Não
havia recuperação de um vacilo desses. Vacilo, claro. Um deslize monstruoso.
Como é que pode?
Estava
do lado errado. Não de ideais ou motivos. Errado de resultado. Iam perder. Não
havia dúvida. Uma sensação terrível. Estar diante do inevitável iminente. Prestes
a ser esmagado. Talvez fosse melhor assim. Melhor do que o que havia acontecido
até agora. Era o fim da espera. A entediante de antes e a amedrontadora de
agora. Sua experiência toda tinha sido uma de desgosto e angústia. O vazio que
viria não tinha como ser pior do que tudo que acontecera até agora.
Não
adiantava fazer nada. Tudo depois da morte da rainha seria patético. Tão
patético quanto essa manobra agora. Só um exercício idiota. Podia ser qualquer
coisa, não tinha jeito. Não precisava nem se mover. Era só esperar parado, se
pudesse. Só esperar. Quieto, calado, submisso. Desistir não era a melhor opção.
Não era, pois não havia opções de verdade.
E
eles ainda avançam. Apressados. Tudo bem. Ele entende. Ele também teria. Não há
por que enrolar. Que viessem. Sem demoras.
Uma
torre anda de lado. Fica na frente do rei inimigo. Uma última tentativa,
parece. Uma tentativa de não fazer tão feio. Só pra manter alguma pose. Pra
poder dizer depois que...
Ela
ficou alinhada com o rei inimigo. Mas... que babaquice. Apelar assim. Adianta
de quê? É só ele mover um pouco e pronto. Sair da frente e só. Isso só atrasa
as coisas. Que desespero ridículo. Uma péssima maneira de terminar tudo. Só pra
encher o saco. O ressentimento estraga qualquer coisa. Só piora as coisas.
É
só o rei mover pra esquerda que
Não,
não dá. O cavalo comeria.
Para
a direita tem um bispo.
. Para
frente nem tem como considerar, claro, a torre continua lá.
As
diagonais estão bloqueadas.
A
não ser que... Não, não há quem possa. Ninguém tem como entrar na frente. Estão
impossibilitados. Todos.
Seria
esta a vitória? É só pegar o rei. E eles não têm escapatória. Não. Não têm.
É
o fim. É a vitória. Assim que ele percebeu isto, algo cresceu dentro de si. Uma
sensação esquisita. Passava por cima de todas as outras. Como que se lavasse
tudo. Uma alegria esquisita. Quase azeda de tão forte. Pesada. Era como se tudo
antes já tivesse sido esquecido. Enterrado pela vitória. Virando pano de fundo
para essa novidade maior. A vitória. A glória.
O
esplendor completo.