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Parece-me
cada vez mais apropriado pensar na vida como nada mais que uma porção de
perguntas reunidas com propósito nenhum além de sua auto-perpetuação. Cada vez
mais vejo peças novas acrescentadas a esse quebra-cabeça infinito, todas se
encaixando perfeitamente com suas vizinhas, sem a menor brecha sobrando, mas
nunca formando uma imagem definida, sempre dando indício de um final próximo,
um pouco além das pontas dos dedos, sempre somente aumentando o tamanho do
todo, dando mais margem para junção de mais informações, uma agregação sem fim
que apenas continua.
O
começo, por exemplo. A cópula dos antecessores, ou a trepada dos pais; qualquer
que seja a descrição escolhida, é um ato repleto de perguntas, não importa o
ponto de vista que se escolha. Nenhum é seguro. A própria criança que naquele
momento está sendo gerada não entenderia patavinas (usando aqui seu hipotético
vocabulário) do que acontecia naquele momento. Uma espécie de luta ou dança
esquisita, um pouco violenta, sei lá. Nojento. Aquilo continuará uma incógnita
na sua cabeça por anos e anos, até o ato específico em questão ser tão distante
no seu tempo que quase deixou de existir realmente.
O
seu desafio então já deixou de ser o de entender aquilo, e sim tentar fazer
aquilo com alguém que se interesse a tal. E logo chegam mais perguntas. Por
exemplo, nesse caso: "quem”.
Assim
continua a vida do coitado. As respostas só vêm para trazer novas perguntas,
muitas vezes mais inquietantes, ou em maior número; não há paz, não existe
silêncio, nunca. Ao menos não em vida.
Pouco
após a solução desse problema, o do início (se é que ele é realmente
resolvido), surge o outro, o único que é tão grande quanto ele, talvez até
maior: o problema do fim.
O
que seria a morte, eis seu resumo mais conciso. No entanto isto resume muito
mal, na verdade, pois qualquer um sabe que a morte é o fim das funções vitais,
o coração para, os pulmões se esvaziam, as atividades cerebrais cessam etc,
etc. A questão “verdadeira” é se a morte é mesmo o fim, como alguém desligando
um interruptor, ou puxando um fio da tomada, ou qualquer outro clichê (imortal)
do gênero. Inúmeros estudos, centenas de religiões e filosofias... há todo um
esforço para entender a morte, vindo de todos os lados, desesperado, buscando
alguma plenitude (ou talvez outra coisa). A situação aí não difere
significativamente da do menino tentando entender dois adultos (esperamos que
sejam adultos, ao menos) fodendo. Por mais que imaginem, especulem, considerem
e reflitam, a coisa continua esquisita para todos que não fazem parte daquilo.
Quem
dera se ao menos fosse assim, simples, dividido entre os que entendiam e os que
não entendiam, pois nem para os que estão lá na sua cama (esperamos que estejam
numa cama, ao menos) a coisa é inteiramente esclarecida. É verdade que eles
sabem o bastante, tanto é que estão lá, sob as cobertas (ou não), mas somente
os movimentos são instintivos. A cabeça, ou melhor, a consciência, não faz
parte desse todo. Deseja-se um pouco de privacidade, não a de outras pessoas,
esta um tanto simples e comum, mas sim a mais difícil, a dessas perguntas
todas, pelo menos agora, que realmente não são pertinentes; mas são raras as
ocasiões de uma ausência assim. Será que ela vai engravidar, será que hoje é
seguro/tomou a pílula/a camisinha é confiável/ele tirou a tempo/a reza pra
santa-das-trepadas funcionou/etc... E mesmo antes elas não cessam, quando ele
não sabe se é hoje que ela finalmente vai liberar, ou ela não sabe o que vestir
(e despir, depois)... ou durante, quando ele se pergunta se ela está gostando
tanto quanto ele, se está gostando dele, se esta vai ser a única vez, etc...
E
mesmo no tarde demais, após já fecundado o desastre, que cresce junto com o
ventre da coitada, elas não dão trégua, como agora com ela, alisando a barriga
e se perguntando se algum dia conseguirá recompor a figura depois daquilo. É
quase como se uma bala de canhão tivesse lhe atingido as costas, prendendo-se
na pele da frente, do ventre, se me permitem esse pequeno plágio.
Isso,
claro, considerando que o coitado (feto) sobreviveu à primeira de todas as
perguntas: e agora, vai ou não vai ter esse bebê, vai, não vai, vai, não vai...
Há quem diga que não há escolha, ao menos não dentro da Lei, mas a verdade é
que isso hoje em dia (se é que é só hoje em dia) dificilmente pode ser
considerado um problema significativo, diferente dos outros que estão sendo
discutidos aqui. Pelo menos isto.
Enquanto
isso o feto aumenta, solto, boiando no útero. Até mesmo seu corpo, aos poucos
tomando forma, no início se parece com um ponto de interrogação, de carne,
vivo, crescendo.
Já
perguntaram ao casal (assumindo que ele não sumiu ao receber a notícia) se é
menino ou menina, sendo que ainda é cedo demais para perguntar, nem sabem se
vai nascer mesmo, parece que ela sente algumas dores fortes de vez em quando, e
por isso é que nem nome tem ainda, seja qual for o sexo, eles tentam não se
apegar muito, não apostar alto pra depois quebrar a cara, já que o médico não
parece muito otimista; nem atencioso o filho da puta é direito. Mas é verdade
que ninguém sabe de coisas assim, pode ser que está tudo bem, que não há
motivos para se preocupar, alarme falso, e pode aparecer um maníaco do nada e
dar um tiro no umbigo estufado dela, assassinando ambos, loucamente declarando-se
misericordioso.
Assim
às vezes é, chega antes do fim do primeiro problema o fim do segundo,
terminando tudo, abrupto. Crianças morrem todos os dias, é verdade. As causas
são todas as possíveis, acidentes, incidentes, ausências... mas mesmo assim, já
na rotina, do todo-dia, já fato desgastado, a pergunta continua: por quê, por
quê, e ecoa.
Parece
trapaça, alguma espécie estranha de trapaça em que não há figuras definidas, já
que a suposta vítima talvez nem tenha sido privada de muita coisa, ou ao menos
se julgue assim ao se ver tanto desprezo pela vida mundo afora. Também não teve
chance de sentir o gosto das coisas que viriam depois, as amarguras, as
malandragens e, acima de tudo, as perguntas, já que o que tivera até então não
exigia justificativa, mas o que viria depois parece que sim.
E
se tudo isso aconteceu só depois do parto, ele (sim, menino), sobrevivente de
todas as agruras de uma gestação complicada e uma infância de pernas meio
tortas (com todos os apelidos carinhosos
criados por seus coleguinhas por conta disso) só para ser atropelado em uma
faixa de pedestre no meio de uma metrópole anônima, continua rodeado de
indagações, das mais variadas. Das que de tão prosaicas beiram a ofensa, como
“quanto custa o enterro”, como as supostamente mais importantes, como ”quem é o
culpado”.
Os
profissionais no porão do hospital escancaram o cadáver na mesa, querendo
encontrar o que realmente matou o moleque, qual dos impactos, qual dos
machucados, sendo que nada daquilo poderia ressuscitá-lo, aquilo sendo quase
como um exercício, útil, mas, no final, fútil. Todo esse conhecimento técnico,
preciso, é quase uma muleta no meio desse turbilhão de incógnitas
indecifráveis, uma espécie de apoio diante do desconhecido, a pequena
resistência que nos é possível, e nas pausas nos perguntamos se essa capacidade
é dádiva ou maldade, essa de poder saber, mas nunca tudo.
Mesmo
nessa aparente tragédia sem tamanho, um pobre menino sendo atropelado e
estatelando-se no asfalto enquanto o carro responsável foge, há pontos
positivos. Nela, duas questões são resolvidas de imediato, questões que
atormentam a todos individualmente. Elas podem ser facilmente resumidas, cada
uma com uma palavra só: como e quando. As respostas: atropelado,
pré-adolescente. E essas duas questões realmente atormentam e perseguem. Nesse
caso, mais especificamente, mal tinha começado a fazê-las. A morte sempre tem
uma cara de conclusão (embora talvez não seja) e às vezes vem com ares de
finalmente, não menos por trazer respostas, já que são poucas as que
encontramos hoje em dia.
Mas
essas duas soluções são muito simples, limitadas, tanto que podem ser
brutalmente resumidas sem grande perda de significado. A pequena vantagem de
possuí-las talvez seja desprezível perante outras perguntas, sangrentas, que
continuam mesmo após fechadas as portas do carro funerário travestido de
ambulância que parte frenético para o hospital, sem razão; talvez o motorista
ache que ainda há esperança, porque teve um acidente parecido no seu passado
(sofrido ou causado), ou um filho da mesma idade, um sobrinho ou vizinho
simpático. Ou ele talvez apenas esteja aproveitando a ocasião para alcançar
altas velocidades, aspecto que pode ter sido o motivo de ter optado por esse
emprego, se é que teve escolha. Ninguém mais ali dentro saberia explicar aquele
comportamento, e ninguém cutuca seu ombro a fim de questioná-lo; a força dos
seus dedos agarrados ao volante e seu corpo curvado sobre o painel afastam este
gesto, embora a curiosidade esteja na cabeça de cada um agachado ali dentro, se
segurando entre a parafernália socorrista no trajeto sinuoso daquela cidade
gigantesca em algum lugar do mundo.
Devo ter escrito isso em 2006 ou 2007. Faz parte do meu livro "Perfume Gasolina", na gaveta desde 2007. Acho que é o meu único conto que eu não conseguiria escrever de novo se o texto por algum acaso sumisse do mundo.
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