É uma das burrices que com mais frequência se reinstauram em minha consciência, o fato de sempre me espantar quando me deparo com uma obra marcadamente inferior de alguém que algum dia produziu algo verdadeiramente grandioso. É talvez uma das poucas crenças adolescentes que ainda carrego comigo (foram embora "ateísmo é grandes coisa", "ser leitor assíduo é grandes coisa" e "eu sou grandes coisa"... tá, confesso que essa última não foi embora por completo), a crença de que o artista de alguma forma nasce decidido e definido, crença completamente insustentável diante da riqueza de provas contrárias oriundas da maldita empiria.
Quando vejo que Boyhood, do Coetzee, veio apenas 5 anos antes de Youth, que Child of God, do Cormac veio apenas seis anos antes de Suttree e The Prague Orgy, do Roth, veio menos de uma década antes do Sabbath Theater (sendo que ele tinha escrito livros ótimos antes mesmo do Prague Orgy), sempre parece que há algo de errado. Ou, para cairmos em terras nacionais, que o Breve História do Espírito, do Sérgio Sant'Anna, é de apenas três anos antes d'O Monstro.
Todo meu aparato racional reconhece que muito do ato de escrever é uma questão de experiência (não só de vida, e talvez nem mesmo primeiramente de vida) , de técnica, de aprimoramento, de paciência e diligência. Mas a superioridade acachapante de certas obras carrega consigo uma certeza meio besta de que elas são feitas de outra coisa que não a mesma das obras inferiores, que elas saíram de outro espírito ou outra realidade ou sei lá (minha disposição de ficar completamente boquiaberto diante de certas realizações estéticas não foi das coisas adolescentes que larguei pra trás). Daí a dissonância da disparidade, ainda mais quando uma coisa claramente nasceu de outra (Child of god me parece muito um rascunho de Suttree, Boyhood e Youth são da mesma trilogia, etc).
Talvez esta sensação de superioridade acachapante (que nem mesmo não tem reconhecimento universal, nem em leitores de boa vontade ou de aparente afinidade estética... tem quem gosta do Blood Meridian e acha o Suttree chatérrimo) seja o que me devolva à ideia meio adolescente de genialidade intocável e inalcançável, quando o percurso do próprio autor por meio de seus livros menores mostra que isto foi algo alcançado, provavelmente a muito esforço e custo.
O engraçado é que eu deveria na verdade sentir alívio ou alegria diante desta realização, afinal, uma das crenças adolescentes que abandonei é que meu primeiro livro é grandes coisa. Destas experiências eu provavelmente deveria tirar ânimo de que talvez algum dia eu consiga construir uma contribuição de peso semelhante ao das obras que eu tanto admiro. Mas daí eu provavelmente precisaria de mais paciência, de escrever um primeiro romance que conscientemente fosse um primeiro romance, um segundo romance que fosse um segundo romance (Suttree foi o quarto livro McCarthy, que até que chegou cedo em sua expressão máxima), e não me deparasse com desespero quase toda hora com a ambição desmesurada do rascunho no qual estou trabalhando (que atualmente se encontra na página 126 e ainda muito longe do final).
Ainda que eu goste bem mais da música do Beethoven, que aos poucos foi encontrando sua grandeza, é a de Mozart compondo pecinhas bonitinhas aos cinco anos a imagem que parece ainda prevalecer como a do artista genial, aquele cara que apareceu pronto e imediatamente diferente.
Ainda que eu goste bem mais da música do Beethoven, que aos poucos foi encontrando sua grandeza, é a de Mozart compondo pecinhas bonitinhas aos cinco anos a imagem que parece ainda prevalecer como a do artista genial, aquele cara que apareceu pronto e imediatamente diferente.
(post motivado pela leitura de "Música Anterior", do Michel Laub, livro em que só vi o valor desse elemento motivacional mencionado acima. Não estou dizendo que o Laub esteja no nível do Cormac, Coetzee, Roth, Sant'Anna, mas que o Diário da Queda não está tão longe do Desonra, do Mancha Humana, do Crime Delicado, não está mesmo)
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