quarta-feira, 14 de maio de 2014

Teorema Dixie Kong de relativismo interpretativo

No clássico Donkey Kong Country 2, os desenvolvedores do jogo encararam o desafio de fazer uma sequência para um sucesso estrondoso como o do jogo original seguindo o caminho da dificuldade aumentada: o que o primeiro jogo tinha de difícil-só-às-vezes o segundo tinha de crueldade quase constante. Para dar uma variada na jogabilidade quase idêntica (joguinho de plataforma estilo Mario em seu auge, naquela época), trocaram o personagem-protagonista, Donkey Kong, por uma macaquinha, Dixie Kong, talvez a primeira protagonista feminina em jogo de plataforma tradicional graúdo da Nintendo (Metroid não conta) desde a princesa peach naquele Mario 2 malucão.

O Dixie Kong tinha uma característica especial: ao pular, poderia flutuar um tempinho antes de cair se o jogador segurasse o botão do pulo. Em um jogo com vários buracos-sem-fundo a serem evitados para conseguir se chegar até o fim das fases, trata-se de algo próximo de um super-poder: ao conseguir a personagem, imediatamente troca-se para ela, a não ser que o jogador prefira economizar esta capacidade para momentos ainda mais difíceis, ficando com o personagem mais fraco só para que ele poder morrer primeiro.

Dilema discussão-de-gêneros: como entender este super-poder? A Dixie sendo melhor do que o personagem masculino de imediato aponta para um empoderamento num esquema girl-power, we can do it (mulher mostrando o muque), a preterição um caso raro se tratando de algo fora do espectro tido como feminino (cuidar de casa, doente, neném, etc) de atividades. Mas se pensarmos no esquema identificativo que existe em personagens de videogames (brasileiros de início se revoltam com o Blanka sendo daquele jeito, faz-se pesquisas sobre World of Warcraft perguntando a jogadores homens que jogam com personagens femininas o porquê deles fazerem isto, etc), é possível pensar que a personagem feminina sendo mais forte existe para que as garotinhas que fossem jogar o jogo e automaticamente escolher a macaquinha (olha o cabelo dela!) teriam menos dificuldade na hora de enfrentar os desafios do jogo. Neste caso, seriam os desenvolvedores colocando a habilidade das jogadoras abaixo da dos jogadores, dando a elas uma ajudinha.

E aí, o jogo é feminista (girl power!) ou machista (“vamos facilitar para as meninas...”)?

Podemos ainda colocar mais duas possibilidades: pode ser uma homenagem ao Mario 2, do NES, em que a princesa peach tinha poder semelhante, ou os desenvolvedores do jogo decidindo depois de desenhar todas as fases que a dificuldade do jogo precisava de uma atenuada e que a personagem nova poderia comportar mais facilmente poderes novos do que o personagem que já aparecia (sem este poder agora tão necessário) no jogo antigo. Seria esse poder um aceno para o histórico dos jogos da Nintendo ou uma questão técnica de design de jogos?

É possível pedir uma resposta aos desenvolvedores de jogos, mas aí a pessoa que faz isto esquece de que nossos atos não se resumem à nossas intenções (demorei pra sacar que intentional fallacy tinha cabimento para bem mais do que só literatura). O ato, realizado, está livre para ser interpretado, com o limite apenas (ainda assim frequentemente ignorado) de se prestar atenção às especificidades do ato. Qual desses quatro caminhos interpretativos escolher?

Se a pessoa passou a infância jogando Super Nintendo e tem enorme carinho pelo hobby e hoje anda por esses círculos que discutem gênero, vai adotar a interpretação Girl Power, querendo defender um pouco os videogames dos ataques de lixo-cultural que até hoje resistem em parte do discurso sobre eles.

Se o desejo é de se transmitir a imagem de uma pessoa extremamente crítica, extremamente exigente, extremamente incisiva e dura, vai falar que o poder da Dixie Kong é machista, subestimando meninas, dando a elas a ideia que tudo na vida que vale a pena ser conquistado será conquistado pelo que ela tem de feminino (o poder de flutuar funciona num esquema pigtail-helipcoter, isto é, o cabelinho bacaninha dela que é o poder), etc etc.


Se a pessoa quer pagar de erudito dos videogames (hahahahaha), vai falar que é homenagem ao Mario 2. Se quer pagar de interessado-no-lado-técnico, o-importante-é-o-design-e-jogabilidade, vai falar que o poder é uma necessidade do jogo e que tentar decantar sentido disso é não entender que jogos são sistemas de interação e desafio etc etc

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