Fala-se muito de certo narcisismo da produção literária mais recente, digo, de algumas décadas para cá. De como se tornou muito freqüente, até mesmo dominante, o protagonismo de personagens intelectuais: o romance que não tem um escritor, crítico, estudioso, artista plástico, músico ou o que seja como protagonista ou pelo menos personagem-interlocutor do protagonista (aquele secundário sempre presente) se tornou figura minoritária na paisagem literária atual. Há quem diga, talvez não sem sua parcela de razão, que se trata de certa falta de visão dos ficcionistas, falta de capacidade de enxergar para além do próprio umbigo, dificuldade de conceber mundos de percepção que não sejam aqueles com o qual já trabalha e que isto seria justamente um dos territórios mais fortes da ficção, o exercício de certa capacidade (forjada?) de entrar na cabeça de outra pessoa. A ficção como fomentadora de empatia, um exercício de certo des-egocentrismo. Grita-se “chega de alter-egos”, para esses escritores que só falam de arte e de si próprios. Eu mesmo passei por certo esforço de sair desta conversa circular de arte-forma-artista-discurso- arte-forma-artista-discurso, que por si só pode ser fascinante (talvez só para quem fala), uma vez que se tomamos como o objetivo da obra de arte textual é o de obliquamente capturar como é que é estar vivo sob determinadas circunstâncias (históricas, psicológicas, sociais e sensoriais) a conversa sobre a forma simplesmente não dá conta sozinha de tudo que a literatura pode alcançar.
Mas lendo recentemente o Everything That Rises Must Converge, da Flannery O’Connor fica para mim bem claro que a criação de personagens intelectualizados (artistas, etc) e até mesmo a instalação deles como protagonistas não pode passar por uma categorização taxativa tão simplificada como “falta de alcance humano da visão do autor” ou “fascínio com umbigo”, da mesma forma como narrativas diferentes com personagens economicamente desfavorecidos podem funcionar das mais diversas formas no campo político. Não só é possível fugir do alter-eguismo quando se coloca um protagonista intelectual (afinal, existem tantos históricos diferentes de leitura quanto existem leitores, não existe só um “jeito de ser intelectual”), como o próprio uso do alter-ego pode dar resultados diferentes: basta comparar o Coetzee com o Bukowski. Recomenda-se não descrever a existência de um protagonista intelectualizado como "simplicidade imaginativa" do romancista sem antes prestar bastante atenção (ainda mais estando ainda na moda o tal jogo de espelhos, falsas referências, etc) nos detalhes de cada obra.
Há uma chance significativa desta predominância da figura do intelectual protagonizando narrativas literárias ser apenas o reconhecimento do lugar da literatura no nosso mundo de compartimentos cada vez mais específicos e isolados: a literatura não tem mais público de milhões, e às vezes nem mesmo de milhares (olá, minha dúzia de leitores), e o escritor talvez não esteja cortando seu canal comunicativo mais amplo ao se especializar neste tipo de personagem mais próximo dele; talvez esteja apenas reconhecendo a realidade que rodeia seu escrever/publicar e tentando estabelecer com mais força/rapidez o laço leitor-texto, fazer com que o leitor (provavelmente intelectualizado, ao menos um pouco) de sua obra preste atenção mais rapidamente em questões mais específicas com as quais ele quer lidar.
Trechinho do Everything that Rises (nada ilustrativo do que eu disse aí em cima, tá selecionado porque é legal mesmo):
"Parker sat for a long time on the ground in the alley behind the pool hall, examining his soul. He saw it as a spider web of facts and lies that was not at all important to him but which appeared to be necessary in spite of his opinion."
Nenhum comentário:
Postar um comentário