Ah, como é encantadora a literatura feminina, com sua sensibilidade, sua delicadeza, sua
ternura, sua doçura...
Em homenagem
às mulheres, que são tão importantes na vida de nós homens, um trechinho que
sublinhei nas minhas leituras dos últimos meses:
“Ela olhou
para trás e viu que o touro, de cabeça baixa, corria em sua direção. Ela
permaneceu perfeitamente parada, não por medo, mas por uma descrença que a congelara.
Ela olhou o traço negro e violento avançando em sua direção como se ela não
tivesse nenhum senso de distância, como se ela não pudesse decidir de imediato qual
era sua intenção, e o touro enterrou sua cabeça em seu colo, feito um amante atormentado e selvagem, antes que sua expressão mudasse. Um de seus chifres
afundou até perfurar seu coração e o outro se curvou ao redor de seu lado e a
segurou em um aperto inquebrável. Ela continuou a olhar direto para frente mas
a cena inteira diante dela havia mudado – a linha de árvores era uma ferida
escura em um mundo que não era nada além de céu – e ela tinha a aparência de
uma pessoa cuja visão tinha sido subitamente restaurada mas que acha a luz
insuportável.”
(Flannery O'Connor)
e
“Só depois de
acusá-lo do crime de silêncio que Babel descobriu quantos silêncios existem.
Quando ele ouvia música ele não escutava mais às notas, mas aos silêncios do
meio. Quando ele lia um livro ele se entregava por inteiro às vírgulas e aos
ponto-e-vírgulas, ao espaço depois do ponto e antes da letra maiúscula da
próxima frase. Ele descobria os espaços em uma sala onde o silêncio ajuntava;
as dobras dos tecidos das cortinas, as tigelas fundas da prataria da família.
Quando pessoas falavam com ele, ele escutava menos e menos do que eles não
eram. Ele aprendeu a decifrar o sentido de certos silêncios, o que é como
resolver um caso difícil sem pistas, não apenas intuição. E ninguém porderia
acusá-lo em não ser prolífico em seu métier escolhido. Diariamente, ele
produzia épicos inteiros de silêncio. No começo foi difícil. Imagine o fardo de
se manter em silêncio quando sua criança pergunta se Deus existe, ou a mulher
que você ama pergunta se você a ama de volta. No início, Babel ansiava pelo uso
de apenas duas palavras: Sim e Não. Mas ele sabia que apenas proferir uma única
palavra seria destruir a delicada fluência do silêncio.
Mesmo depois
de eles terem prendido ele e queimado todos seus manuscritos, que eram todos
páginas em branco, ele se recusava a falar. Nem menos um gemido quando eles
deram nele uma pancada na cabeça, um pontapé de bota na virilha. Apenas no
último momento possível, quando ele estava frente ao pelotão de fuzilamento,
que o escritor Babel subitamente percebeu a possibilidade de seu erro. Enquanto
os rifles eram apontados ao seu peito ele se perguntou se o que ele tomou pela
riqueza do silêncio era na verdade a pobreza de nunca ser escutado. Ele tinha
pensado que as possibilidades do silêncio humano não tinham fim. Mas quando as
balas rugiram dos rifles, seu corpo foi crivado de verdade. E uma pequena parte
dele riu amargamente porque, de qualquer maneira, como que ele poderia ter
esquecido o que ele sempre soube: Não há nada que se iguale ao silêncio de
Deus.”
(Nicole Krauss)
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(as duas
traduções são de minha autoria)
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Agora vamos
desligar o sarcasmo (via das dúvidas é melhor avisar) para tratar de algumas obviedades. Por que existe a expressão "literatura feminina" se ninguém fala em "literatura
masculina"? O que haveria de "feminino intrínseco" nos trechos acima? A resposta que seria uma temática não satisfaz: existe, talvez, uma tendência geral de escritoras de tratarem de certos temas, assim
como existiria de homens tratarem de outros; mas a literatura de interesse real não seria aquela que supera tendências, ou as toma como
desimportantes? Não foi espanto e interesse o que causou o Knausgaard ao falar
de paternidade quando criar filhos era tido como um assunto para mulheres? É difícil não entender como uma limitação a ideia de que mulheres escrevem sobre "o mundo feminino" enquanto os homens escrevem sobre todos os outros temas.
Talvez não
exista mesmo um leitor que vá desconsiderar por completo o gênero do autor ou autora na
hora de apreciar um livro, mas acho mais interessante que se
tome o cuidado para isso não passar de um detalhe, ou mesmo uma opção em vez de uma obrigatoriedade: falar que toda a brutalidade
dos contos da Flannery O'Connor vem de uma pessoa com útero pode ter a mesma relevância baixa como se fala
que vem de uma pessoa que criava galinhas na infância e ensinou uma delas a
andar pra trás. Associá-la a outras obras pelo conteúdo de sua escrita, a
religiosidade desgraçada, a descrença na capacidade do ser humano se superar seus impulsos mais estúpidos e mesquinhos,
e não pela caixinha que ela fazia x quando preenchia formulários, é uma postura que me parece mais produtiva e mesmo respeitosa à artista.
(não foi o caso na hora do lançamento mais recente dos contos dela no Brasil, colocados em uma série "mulheres modernistas". A decisão provavelmente se justifica do ponto de vista comercial - bem mais grave é o fato do livro ainda não ter sido reeditado depois do fim da Cosac)
(não foi o caso na hora do lançamento mais recente dos contos dela no Brasil, colocados em uma série "mulheres modernistas". A decisão provavelmente se justifica do ponto de vista comercial - bem mais grave é o fato do livro ainda não ter sido reeditado depois do fim da Cosac)
É de fato negativo que a maioria tão grande das pessoas que escreve (ou das que são publicadas) é masculina, pelo mesmo motivo que é negativo que a maioria seja sempre masculina em quase todos ofícios tidos como importantes: para além da injustiça com parte enorme da população que não recebe as mesmas oportunidades, há também o desperdício imenso de talento não é desenvolvido por falta de incentivo.
No entanto, se o incentivo chegar a um exagero de descaracterização num esforço que se completa no quesito compensatório
("precisamos de mais mulheres escrevendo"), corre-se o risco de forçar uma distorção que pode acabar deixando de lado o mais fundamental: a qualidade do resultado.
Tomar o "lugar de fala" como critério primeiro debanda para essa crueldade que faz de um livro ruim ou bom ser igualmente um
"livro feminino", do qual precisaríamos mais, dando aplausos pela iniciativa do ponto de vista social em vez de qualquer decisão que a pessoa tenha tomado como artista. Imagino que poucas artistas vão ter interesse em manter a discussão de suas obras nesse nível superficial.
Ainda que seja uma verdade inquestionável que o cânone literário (assim como de todas as outras áreas, convenhamos) seja composto quase só de homens (e brancos), eram igualmente homens e brancos muitos outros dos que tentaram e fracassaram; a seleção, portanto, diferente de simplificações que ocasionalmente encontramos por aí, não é mero exercício de hegemonia de gênero ou raça, ainda que tenha sido um fator atuante, e não apenas na hierarquização das obras prontas, e sim de efetivamente não publicar manuscritos, ou mesmo de fazer pouco (com grosseria ainda maior do que a habitual) das inciativas artísticas de alguém que está começando, quando essa pessoa é uma mulher.
Existe um problema real do que pode ser chamado de "imagem genérica de genialidade": o que é apresentado vindo de outros contextos é muito facilmente posto de lado em favor de outros produtos que estejam mais alinhados com o molde socialmente consagrado, e é razoável que se acredite que sem um esforço ativo e o desenvolvimento de uma consciência desse processo o problema não vá melhorar, mas, de novo, é preciso resguardar o espaço fundamental para a qualidade, o conteúdo em si , e o direito de qualquer leitor ou leitora de não gostar de qualquer coisa que vá ler, sem que tenham engatilhado contra essa pessoa toda uma série de acusações (ou revirar de olhos) de colaboracionismo com diversas injustiças sociais.
Existe um arrepio, ou uma súbita perda de fôlego, diante de alguma obra que consegue ser mais do que apenas outra recombinação de signos ou símbolos. É de uma crueldade desnecessária que o jogo apresente marcas tão claras de ser tendencioso a favor de certos segmentos sociais; no entanto, o jogo tem sim seu quê de crueldade inevitável, que é que a maioria, mesmo entre os mais favorecidos, está destinada ao fracasso e ao esquecimento, a ver que todos seus esforços foram, na verdade, infelizmente, desnecessários.
--
Para que o texto não fique muito genérico, algumas obras escritas por mulheres que li recentemente e recomendo muito: "O que eu amava", da Siri Hustvedt, "Autobiography of red", da Anne Carson, "Antônio", da Beatriz Bracher, "Os Malaquias" da Andrea Del Fuego" e "Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas" da Elvira Vigna.
Ainda que seja uma verdade inquestionável que o cânone literário (assim como de todas as outras áreas, convenhamos) seja composto quase só de homens (e brancos), eram igualmente homens e brancos muitos outros dos que tentaram e fracassaram; a seleção, portanto, diferente de simplificações que ocasionalmente encontramos por aí, não é mero exercício de hegemonia de gênero ou raça, ainda que tenha sido um fator atuante, e não apenas na hierarquização das obras prontas, e sim de efetivamente não publicar manuscritos, ou mesmo de fazer pouco (com grosseria ainda maior do que a habitual) das inciativas artísticas de alguém que está começando, quando essa pessoa é uma mulher.
Existe um problema real do que pode ser chamado de "imagem genérica de genialidade": o que é apresentado vindo de outros contextos é muito facilmente posto de lado em favor de outros produtos que estejam mais alinhados com o molde socialmente consagrado, e é razoável que se acredite que sem um esforço ativo e o desenvolvimento de uma consciência desse processo o problema não vá melhorar, mas, de novo, é preciso resguardar o espaço fundamental para a qualidade, o conteúdo em si , e o direito de qualquer leitor ou leitora de não gostar de qualquer coisa que vá ler, sem que tenham engatilhado contra essa pessoa toda uma série de acusações (ou revirar de olhos) de colaboracionismo com diversas injustiças sociais.
Existe um arrepio, ou uma súbita perda de fôlego, diante de alguma obra que consegue ser mais do que apenas outra recombinação de signos ou símbolos. É de uma crueldade desnecessária que o jogo apresente marcas tão claras de ser tendencioso a favor de certos segmentos sociais; no entanto, o jogo tem sim seu quê de crueldade inevitável, que é que a maioria, mesmo entre os mais favorecidos, está destinada ao fracasso e ao esquecimento, a ver que todos seus esforços foram, na verdade, infelizmente, desnecessários.
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Para que o texto não fique muito genérico, algumas obras escritas por mulheres que li recentemente e recomendo muito: "O que eu amava", da Siri Hustvedt, "Autobiography of red", da Anne Carson, "Antônio", da Beatriz Bracher, "Os Malaquias" da Andrea Del Fuego" e "Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas" da Elvira Vigna.
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