quarta-feira, 9 de março de 2016

"After Joyce", do Barthelme, traduzido

Uma traduçãozinha rápida do After Joyce, do Barthelme, para uma aula que darei como convidado na matéria de Introdução a Teoria da Literatura. Deixei de fora a página do texto que discute ficcionistas contemporâneos, pois não serviria para a aula.

No meio do texto (eita) tem um parágrafo do Finnegans Wake que fiz o que pude pra passar pro português, tendo em vista meu conhecimento de enciclopédia sobre o livro(no sentido de ser do tamanho de um verbete superficial de enciclopédia, não de poder fazer uma enciclopédia sobre o livro). Botei o original embaixo, caso alguém queira saber como era.

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Após Joyce (1964)

Escrevendo sobre arte revolucionária em um ensaio de início de carreira intitulado “The Calling of the Tune”, Kenneth Burke diz:

Quanto maior a dissociação e descontinuidade desenvolvidas pelo artista em uma arte de-outro-mundo que deixa as coisas de César tomarem conta de si mesmas, maior se torna a dependência do artista a um líder que aceitará a responsabilidade para fazer o “serviço sujo” do mundo.

Essa descrição do artista virando as costas para a comunidade em busca de seus projetos “de outro mundo” (a partir do qual a comunidade prontamente se despedaça) é bastante familiar, aceita até por alguns artistas. Joyce, Gertrude Stein, e os escritores da escola da transição (Burke menciona eles especificamente) são vistos como desertores, criando seus próprios mundos que são imaginados como não tendo nada a ver com o mundo maior. A imagem é, creio eu, inteiramente incorreta, mas eu quero falar não sobre o suposto erro de Burke nessa questão e sim sobre outra coisa.
As opiniões duras de Burke trazem a questão complicada do que “se trata” a arte, e o deslocamento misterioso que ocorre assim que alguém diz que arte não é sobre alguma coisa e passa a ser alguma coisa. Ao dizer que o escritor cria “dissociação e descontinuidade” em vez de meramente descrever uma descontinuidade e dissociação previamente existentes (a palavra chave é “desenvolvidas”), Burke percebe que com Stein e Joyce a obra literária se torna um objeto no mundo em vez de um texto ou comentário no mundo – uma mudança crucial em status que também estava acontecendo em pintura. Com Joyce, e em medida menor Gertrude Stein, ficção alterou seu lugar no mundo em um movimento tão radical que suas consequências ainda estão para ser assimiladas.
Satisfeitos nem com o mundo existente e nem com a literatura existente, Joyce e Stein modificam o mundo acrescentando ao seu repertório de objetos o objeto literário – que então se encontra do mesmo jeito como outros objetos no mundo. A questão se torna: qual é a natureza do novo objeto? Aqui é possível ver um resultado imediato do deslocamento. Interrogando obras antigas, a questão é: o que você diz sobre o mundo e estar no mundo. Mas o objeto literário é em si “mundo” e a vantagem teórica é que ao perguntar a ele você está fazendo perguntas diretamente ao mundo. Isso soa como uma espécie de ato de ventríloquo – o escritor jogando sua voz. Mas é, na verdade, um ganho estratégico incrível para o escritor. Ele de fato se removeu da obra, da maneira como Joyce o instruiu a fazê-lo. O leitor não está ouvindo a um relato de autoridade do mundo feito por um expert (Faulkner sobre o Mississipi, Hemingway sobre touradas) mas se trombando contra algo que está ali, feito uma rocha ou um refrigerador. A questão tão frequentemente feita à pintura moderna “o que é isso?” contém mais do que o tedioso ceticismo do homem que não vai se deixar enganar. Ela expressa um lugar fundamental em relação ao trabalho, aquele do viajante do mundo se deparando com um objeto estranho. O leitor reconstitui o trabalho por sua participação ativa, aproximando-se do objeto, batendo de leve nele, sacudindo, segurando-o contra o ouvido para ouvir o rugido interior. É característico do objeto que ele não se declara todo de uma vez, em uma pressa de ingenuidade agradável. Joyce reforça o jeito que Finnegans Wake deve ser lido. Ele concebeu a leitura como um projeto de vida inteira, o livro permanecendo sempre ali, feito a paisagem ao redor do lar do leitor ou os prédios circundantes do apartamento do leitor. O livro permanece problemático, não exaurido.
Valéry uma vez escreveu: “Às vezes eu penso que existirá lugar no futuro para uma literatura cuja natureza vai se assemelhar com a de um esporte. Vamos subtrair, de possibilidades literárias, tudo que hoje, por expressão direta de coisas e estímulo direto de sensibilidade por novos meios – filmes, música onipresente etc- está se tornando inútil ou ineficaz para a arte da linguagem. Vamos também subtrair uma categoria inteira de assuntos – psicológicos, sociológicos etc – que a precisão crescente das ciências vai tornar difícil de tratar livremente. Vão restar às letras um domínio privado: a expressão simbólica e de valores imaginativos vindos da combinação livre de elementos da linguagem”.
Os livros de Joyce apresentam primeiro uma superfície linguisticamente empolgante, densa, cintilante, aqui opaca, aqui transparente. “A cafetina do padeiro ela desliza sua mão na sacola de feijão, a dona aguardando beberica seu gole de uma lata de parafina, Sra Lebreselvagem Médicorápido salteia a saia calçada acima o instinto acesto ela rebanha se um tinido de torvão, a viúva de Megrievy ela cose camas de gatos, esta atriz bondosa coleirando um saqueador sob sua língua, e aqui está a garota a quem ela ajoelhou de maneirafria...”(1) A biografia de Ellmann nos conta que Joyce “defendia sua linguagem... como um meio principalmente emocional construído de aglutinações e afinamentos...” De fato ele procede como um homem tecendo uma manta do que pode ser encontrado em uma loja de ferramentas. A estranheza desse projeto é uma parte essencial dele, e quase seu propósito. O tecido se desfaz, certamente, mas onde ele se mantém junto nós temos o privilégio de encontrar um mundo feito novo. Semelhantemente, quase qualquer citação de Gertrude Stein mostra uma disposição a seguir a linguagem onde quer que ela leve (e se leva a lugar nenhum, mostrar como central isso): “Muito recentemente conheci um homem que disse, como vai. Uma história esplêndida”. Essas perversidades respondem perfeitamente às especificações de Valéry.
Argumenta-se que a situação ontológica da obra literária sempre foi essa, que o Progresso do Peregrino é um “objeto” nesse sentido tanto quanto Finnegans Wake. Mas tal argumento ignora a situação modificada advinda de quando o escritor ou escritora está ciente de e explora as possibilidades desse lugar especial. Joyce e Stein colhem os benefícios de uma nova estratégia. Suas criações modificam o espectador. Eu não creio que é caprichoso, por exemplo, dizer que o Governador Rockefeller, diante de seus Mirós e de Koonings, é em parte modificado por eles, e se não fazem dele um Democrata ou Socialista eles pelo menos mudam o caráter de seu Republicanismo. Considerado nessa luz, a hostilidade soviética à arte “formalista” se torna mais inteligível, assim como a antipatia de senadores, prefeitos e figuras de comitês governamentais. Da mesma forma, o livro de Joyce trabalha sua vontade radicalizante em todos os homens em todos os países, até sobre aqueles que não leram e jamais vão ler.
Como disse Marshal McLuhan em outra conexão, o meio é a mensagem.

O esforço do artista, sempre e em qualquer lugar, é obter um modo novo de cognição. Ao mesmo tempo que ele luta para se desembaraçar de procedimentos que o forçam a dizer coisas que sejam comuns ou falsas. O que faz de um objeto literário uma obra de arte é a intenção do artista. Quando Roy Lichtenstein propõe como arte uma tirinha de quadrinho aumentada, uma réplica em cada detalhe exceto na escala de uma tirinha de quadrinho, nós somos apresentados com a intenção do artista, seu gesto, sua nudez. (Sua “declaração” pode ser, caracteristicamente, uma pergunta: O que você pensa de uma sociedade em que essas coisas são vistas como arte?). Nessa maneira as preocupações sociais e histórias re-entram a ambientação do trabalho. Longe de querer dizer que a literatura é seu próprio assunto, o trabalho que é um objeto é rico em possibilidades. A intenção do artista pode variar em qualquer direção, incluindo as direções que tem a aprovação de críticos voltados para questões sociais. O que é importante é que ele tem se colocado em uma posição para ganhar acesso a uma gama de sentidos anteriormente inacessível a sua arte.
Os escritores que se aproveitavam dessa estratégia particular são poucos, e as razões para isso são óbvias. Não apenas existiram fracassos altamente visíveis, mas mesmo os sucessos tem sido intimidantes. Finnegans Wake não é uma obra que encoraja emulação. Ezra Pound anunciou cedo que nas porções que ele tinha lido, as recompensas não tinham valido o esforço de decifração, e essa permaneceu como a opinião geral (ainda que escondida). Escritores tomam emprestado esboçar em padrões de mito ou o fluxo de consciência de Joyce, e pensam que Wake como um monumento ou uma obsessão, de qualquer maneira algo que não precisa ser repetido. Semelhantemente, Gertrude Stein é tida como uma excêntrica interessante, ligeiramente tola, que teve algo a ver com a carreira de Ernest Hemingway e comprou várias pinturas de valor a preços extremamente baixos. Transição se torna um campo de batalha negligenciado coalhado de caixas vazias de cartuchos e cavalos mortos da Revolução da Palavra. Ficção depois de Joyce parece ter se dedicado para propaganda política, romances de relações sociais, a contos construídos como ratoeiras para suprir, ao fim, um pequeno insight tendo a ver tipicamente com inocência violada, ou a obras escritas como veículos para dizer não! em trovão.  (O operador da folha de metal é imediatamente colocado sob suspeita; suspeitamos de ser um homem feliz.)
Dois ensaios de Mary McCarthy sugerem a situação da ficção após Joyce, ou pelo menos aqueles escritores que escolheram considera a obra dele como um desvio em vez da rua principal. No primeiro, “O Fato na ficção”, senhorita McCarthy argumenta que o romance, concebido como uma coleção de fatos, não pode sobreviver a um confronto com o mundo contemporâneo, concebido como uma textura de coisas implausíveis.  Diante da Bomba, Buchenwald e a explosão populacional, o romancista gagueja “parece que o romance, com o seu bom senso, é de todas as formas a menos adaptada a dar conta do mundo moderno, cuja característica principal é a irrealidade. E assim, da maneira como eu entendo, o romance está morrendo.”
O que é curioso é a forma que a senhora McCarthy limita seu meio. Ela começa definindo o romance de tal maneira para incluir todas as grandes obras do passado e tornar o futuro duvidoso, definido o romance como uma estrutura de fato e seguindo adiante para declarar a ereção de tais estruturas não mais possível pelos fatos terem se tornado “irrealidade”. Ela não se preocupa muito em como essas torres condenadas se mantém juntas, apenas com o agregado que forma sua substância. No segundo ensaio, “Personagens em Ficção”, ela explicitamente condena fuçar com novos designs: “um impasse foi encontrado na arte de ficção como resultado de progresso e experimentação”. Inovação formal, ela acha, expulsou um interesse em pessoas, enredo, personagem, o social. Pelos dois ensaios ela argumenta de maneira persuasiva para um retorno às virtudes tradicionais da ficção, para receitas de geleia e receitas para Senhora Micawber.
Isso soa como a declaração de falência temperada com uma denúncia que o parceiro culpado fugiu com a grana. Os fatos da vida contemporânea não são fatos “reais”, como os disponíveis a Tolstoi; portanto ou meu empreendimento é impossível ou eu devo retornar ao tipo de material que pode acomodá-lo, isso é, a substância do romance do século dezenove. Estranhamente, detecta-se um medo da ciência, o “jogo de linguagem” em que o conceito de progresso e experimentação tem seu lar original. Ciência fraquejou para sempre o otimismo ingênuo em relação a essas ideias (e senhora McCarthy já disse que O Grupo é sobre a ideia de progresso). Ansiedade advinda da Bomba é traduzida como uma abominação de inovação literária. De qualquer forma, o manifesto conservador da senhorita McCarthy adequadamente expressa um dilema real – aquele do escritor traído por formas antiquadas.
(...) [exemplifica como tentativas bem-sucedidas de criação de objeto literário em Burroughs, Beckett, Kenneth Koch, etc.] (...)
Os romancistas franceses, Butor, Sarraute, Robbe-Grillet, Claude Simon, Philippe Sollers, tem por outro lado sido bem sucedidos em fazer objetos de seus livros sem colher nenhum dos benefícios estratégicos da manobra – um triunfo da inteligência mal-alocada. Seus trabalhos parecem pesados, auto-conscientes do jeito errado. Dolorosamente lentos, sem saltos de imaginação, concentrados nas minúcias da consciência, esses romances escrupulosamente, com sinceridade mortífera, separam para fora o que pode ser dito com segurança. Em um esforço para evitar psicologismos e suposições descabidas eles chegam à inconsequência, carregando aquela guerra francesa tradicional contra o burguês que ao fim termina por lisonjeá-lo:  que monstro! Senhorita Saraute, em seu romance mais recente, Os frutos dourados, tenta uma versão satírica da cena literária parisiense que alguns acharam sagaz e engraçada. Para outros é viciada pelo vanguardismo sombrio do dispositivo que a estrutura, o coro de vozes não identificadas. É como se os romancistas franceses não soubessem brincar.
A brincadeira é uma das grandes possibilidades da arte; é também, como Norman O. Brown torna claro em seu Vida Contra Morte, o princípio-Eros cuja repressão traz a calamidade total. Os praticantes sem humor do nouveau Roman produzem tais calamidades regularmente, assim como nossos idólatras nativos do Fato soberano. É um resultado da falta de seriedade.

(1)“The grocer’s bawd she slips her hand in the haricot bag, the lady in waiting sips her sup from the paraffin can, Mrs Wildhare Quickdorr helts her skelts up the causaway the flasht instinct she herds if a tinkle of tunder, the widow of Megrievy she knits cats’ cradles, this bountiful actress leashes a harrier under her tongue, and here’s the girl Who she’s kneeled in coldfashion...

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