É
uma equação esdrúxula, mas a melhor forma de resumir o Norman Rush para mim é
David Foster Wallace + formação clássica + Dostoievski. Esdrúxula, como toda
equação que trata de literatura, e também por tomar como base interpretativa um
autor que é mais jovem do que o discutido, mas ela ajuda a entender um pouco do
fascínio que o livro alcança.
Ele
é David Foster Wallace no ímpeto que também tem de fazer um relato preciso dos
movimentos de consciência de um personagem. Se a defesa clássica da prosa de
ficção sobre outros meios mais rápidos de transmissão de narrativas (cinema,
quadrinhos, etc) é que apenas ela tem o poder de naturalizar a consciência de
outra pessoa, colocando os pensamentos em meio à ação sem sobrepesar o
andamento da história, o Norman Rush sem dúvida seria um dos cúmulos desse
aspecto supostamente intrínseco à nossa desvalorizada arte. Tudo que ocorre no
livro é mediado (e por vezes interrompido em sua continuação) pela consciência
meticulosa e obsessiva do protagonista, a ponto de que os acontecimentos (que
são até bastante dramáticos e envolventes) parecem que são apenas o
acompanhamento do principal que é a subjetividade do personagem e sua
capacidade reflexiva.
Por mais inteiros que pareçamos por fora (em
geral para pessoas que não nos conhecem bem), somos frequentemente uma bagunça
por dentro, e mesmo as nossas certezas mais aparentemente sólidas são
alcançadas por contradições rapidamente resolvidas intra-cranianamente na
medida em que nos deparamos com novas informações. Nossos raciocínios não
alcançam as conclusões com as quais vivemos e agimos na vida de maneira
imediata, e mesmo essas conclusões que parecem sólidas feito pedra desaparecem até
mesmo sendo substituídas pelo seu oposto ante uma situação nova: a máxima clássica
de que o personagem bem-feito é aquele capaz de surpreender o leitor é apenas
xerox da realidade que somos capazes de surpreender a nós mesmos com nossas próprias
reações. Um trauma superado ressurge como se estivéssemos na estaca zero, nos
vemos mais covardes (ou quem sabe mais corajosos) do que esperávamos em certo
momento urgente, somos incapazes de seguir com planos a princípio perfeitamente
traçados.
O
raciocínio de Ray Finch, protagonista do livro, é construído aos olhos do
leitor como num programa de tutorial de como-se-faz, como-se-é-humano, numa
naturalidade que o que termina por surpreender é como isso figura como
surpreendente, estranho sendo que os outros livros não sejam assim. Um exemplo
micro disso é o momento em que ele está diante do novo chefe babaca dele,
sintetizado na frase “He hated Boyle, but not really”; os manuais de
como-fazer-literatura provavelmente corrigiriam isto por algo do tipo “ele
quase odiava Boyle”; aparentemente muito melhor que duas formulações em que a
segunda efetivamente corrige a primeira. Uma construção o mais precisa possível
a princípio seria melhor do que duas em luta, mas não é apenas o efeito (de
consciência) que é valoroso, sua cópia de como funciona a cabeça de uma pessoa:
o conteúdo resultante é também diferente. Naquele centésimo-de-segundo antes de
vir o próximo pensamento, o protagonista estava realmente com aquela conclusão
a respeito de seu chefe. O livro é inteiro assim (geralmente em frases bem mais
alongadas), feito de percepções que se acumulam e se substituem sem nunca
ficarem confusas, e sim uma precisão ao mesmo tempo absoluta e borrada, criando
uma proximidade quase estranha com a realidade.
Quanto
à formação clássica, é na verdade uma expressão incorreta, já que não se trata
das grandes figuras da antiguidade (Cícero, etc), e sim uma erudição
naturalizada relativa à tradição literária da língua inglesa. A diferença com
Foster Wallace, que de fato tinha toda essa formação gigantesca que a nós
(mais) mortais parece francamente inatingível, é que ele trazia o mundo
midiático como tema constante de sua obra, enquanto o Norman Rush (seu
personagem, mas, convenhamos, claramente também o autor) tem todo o
estranhamento despudorado com o ““”emburrecimento“”” (aspas entre aspas) do
mundo contemporâneo que se espera de um estereótipo de intelectual, como uma
lamentação de que o vocabulário comum atual é supostamente menor do que o nos
anos 1950 (para mencionar uma das muitas lamúrias ocasionais de Ray).
No
entanto, o efeito dessa formação sólida do autor, reproduzida no protagonista,
é um texto desavergonhadamente inteligentíssimo, carregando sua cultura como
quem carrega aspectos de sua pessoa que são naturais (e não longamente
adquiridos), não hesitando em exibir um dos efeitos que a leitura contínua e
compulsiva produz na mente de quem embarca nessa jornada. Parece que o francês
tem uma expressão “mobiliar sua mente” no que diz respeito ao hábito de leitura,
quando me parece mais próximo do real é uma espécie de povoamento fantasmático da
consciência, em que figuras literárias que lhe causaram impacto como que
aparecem de repente em meio aos seus pensamentos, seja para ecoar de novo uma
frase que tenha ficado por um tempo ou permanentemente (às vezes nos lançando
numa busca de origem, “quem mesmo que falou isso?”), ou para dar uma opinião
(imaginária, claro, reconstituída pelas impressões do próprio leitor, mas que
ressoa como inteiramente verídica) sobre o que se tem diante de si, não apenas
em momentos de fruição de obras de arte.
Percebemo-nos
habitando aquele espaço a princípio da burrice, de ficar pensando várias vezes
“esse cara é mesmo muito inteligente”; é claro que existem várias inteligências
diferentes dentro do conceito uno de inteligência, seja rapidez de raciocínio,
erudição (até os burros, por insistência, conseguem algum acúmulo), aptidões
múltiplas e nada-complementares. Mas com o tempo nos vemos voltando (e até
ansiando pela experiência desse retorno) de simplesmente nos admirarmos com a
capacidade (ou conquista) incomum e improvável de certas obras, em que de
repente de novo tudo que concerne a mente parece ser uma questão classificável
e que estamos diante de alguém extraordinário como que naturalmente.
Já
a parte Dostoievski, vem muito da constatação do Foster Wallace da disposição
desabrida do russo de fazer sua obra um palco para discussões detidas e do mais
alto nível de seriedade. Qualquer leitor/espectador mais interessado vai se
dando conta que a lacuna é parte fundamental de qualquer obra de arte; não só
não é possível falar tudo, como é nada desejável falar o máximo. O que muitos
artistas optam por fazer a partir daí é de certa forma contornar de várias
formas suas questões principais: uma tristeza é expressada por silêncios, ou
pelo cenário, em vez de jogada na mesa, o texto se alongando como que em órbita
em relação a um centro tornado tabu. O pessoal do new-criticism chamava isso de
objetivo-correlativo, se me lembro corretamente: não é possível falar de amor,
portanto falamos de primavera, flores, etcéteras. O risco de ignorar essa boa
regra é sair da ineficácia (“que tédio, outra história que metaforiza pela
tempestade as inquietações humanas”) e cair no ridículo ou ensaístico/analítico,
transformar a narrativa em um tratado descritivo pretensamente minucioso das
emoções humanas.
Dostoievski
não tinha medo de encenar longas discussões a respeito dos tópicos que
considerava importantíssimos, espichar monólogos que buscavam expressar com
exatidão exaustiva o estado de espírito de seus personagens, exatamente o quão
comovidos ou destruídos eles estavam pelo mundo circundante. A mesma coisa com
o Rush. Nunca li um livro tão disposto a falar longamente do amor e da paixão,
sexual e de afinidades, aquela intimidade aprofundada que se desenvolve como se
fosse um pedaço sempre tateável da subjetividade de uma pessoa. Seu primeiro
romance, Mating, um relacionamento que se inicia; o Mortals, um relacionamento
já de muitos anos, enfrentando uma crise. Não é apenas nesse sentido: os
romances tem ambientação em Botswana, com os personagens americanos descrentes
e mesmo assim encantados com o lugar, e acaba por passar por discussões a
respeito de geopolítica, cultura local, papel dos Estados Unidos no mundo, sem
que (como parece mais comum) sejam coisas mencionadas apenas para constarem como
existentes e serem rapidamente colocadas de lado, para o romance tratar do que
realmente importa, a narrativa e o enlace emocional.
A
naturalidade com que o livro desenvolve essas três frentes, a minúcia da
consciência, a gigantesca carga cultural e a importância do assunto tratado, é
absolutamente espantosa. Parece contemporaneamente mais seguro apostar no
ressalto do que há de artifício em arte, narrar apenas depois de avisar várias
vezes que há muito que não será narrado, a nova forma de erguer a cabeça é
abaixar a cabeça. Mortals chega a ser quase um livro do século dezenove em sua
pretensa solidez. Tem seu quê de excessivo e digressivo, trechos inteiros que
poderiam ser cortados sem prejuízo para o todo (meia página falando mal da
transformação/consagração de Joyce de escritor realista em puzzlemaker,
pontuada por um singelo “fuck him”); pela recepção crítica que teve, parece que
seu livro mais recente, Subtle Bodies, mais curtinho, sofre justamente por
certo desajuste de velocidade: demora demais para construir seu mundo sem ter o
espaço e demora necessários para o acúmulo e o efeito de resolução. Lerei.
Norman Rush para mim está na categoria de grandeza que até os fracassos
interessam.
J.G.
Ballard diz na introdução de seus contos reunidos que lamenta a queda de status
que a short story sofreu durante seu tempo de vida: no início de carreira eram
várias as revistas literárias (de ficção científica ou não) que buscavam novos
talentos e conseguiam vendagem para se manter, enquanto hoje parece que o campo
virou quase todo para os romancistas. Ele fala que acha isso curioso, pois
conhece vários contos perfeitos e nenhum romance perfeito. Já eu acho que está justamente
aí um dos segredos dessa predominância: essa imperfeição é como um efeito de
realidade, em que nem tudo cabe a uma máquina central de sentido, encaixado com
exatidão: há sobras, excessos, espaços em branco que não são meticulosamente
esculpidos por um texto-moldura. Certo aspecto intangível de inacabado, do
livro que de certa maneira poderia continuar e não continua, o livro que
poderia calar e se alonga. Claro, muito difícil de definir qual a medida disso
em que realmente entra no espaço do erro e da imperícia, mas essa dificuldade
de definição é também indício de que algo que é real foi capturado.
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Trechinho,
traduzido por este que vos posta:
It never changed for him, seeing
her again after a day’s separation, or even less. He felt a flowing, objectless
gratitude so strong it weakened him. He wanted her touch. It was permanent with
him. She put her hands on him and slipped one hand through the unbuttoned top
of his shirt. She was wearing a plain white sundress and she was barefoot. The
shape of her heavy hair against the light and the scent of it as he put his
face into her hair were perfections, were absolute things. He was forty-eight.
She was thirty-eight. A pleasure he had was catching flashes of surprise in
people’s expressions when she told her age, which she was always truthful
about. He often had the satisfaction of seeing people look at him, obviously
wondering what it was about him that they weren’t seeing that made it
reasonable for a woman of this quality to be with him, be his. He had always
looked his exact age. And he also liked seeing them being given pause by
someone at her level of physical beauty dealing with people so much more
nicely than she should be, on their past experience of great beauties, which
she was, which she was. These were instantaneous moments, but real. She was a
democrat, a spiritual democrat. And then with women, and gay men too,
sometimes, he would get the moment when they tried subtly to ascertain if they
could possibly be right in their first impression that Iris was wearing hardly
any makeup. There was a way they widened their eyes briefly and then focused
again. Iris wore next to no makeup.
He wanted the touch of her breath
on his throat. When they embraced after being
separate that was what he wanted
first.
“You are so beautiful,” she said.
“So say we all,” he said, being wry.
A line came to him, I
am the mirror you breathe on. It wasn’t quite right, though. If he wrote
poetry what he would want would be a line that united holding a mirror up to
the mouth and nose of a particular beloved to see if she was still alive with the mirror being the fixed
register of her personal beauty. Could the line be I
am the mirror your breath is for? He
thought. No because it’s slightly sinister. No because it’s stupid. This was
why genius would be so handy if you had it. Iris had no real appreciation of
how beautiful she was. She was sealed off from that by her past, complications
in her past, and he lacked the genius to strike through and say Look what you
are! Look! and have her believe it.
Nunca mudava para ele, vê-la de novo depois da separação de
um dia, ou até menos. Ele sentia uma gratidão fluente e desobjetificada tão
forte que chegava a enfraquecê-lo. Ele queria o toque dela. Era permanente com
ele. Ela colocou suas mãos nele e deslizou uma mão pelo topo desabotoado de sua
camisa. Ela estava de vestidinho branco e sem estampas e ela estava descalça. A
forma de seu cabelo pesado contra a luz e a fragrância quando ele colocava seu
rosto no dela eram perfeições, eram coisas absolutas. Ele tinha quarenta e oito
anos. Ela tinha trinta e oito. Um prazer que ele tinha era capturar flashes de
surpresa nas expressões das pessoas quando ela dizia sua idade, em que ela
nunca mentia. Ele frequentemente tinha a satisfação de ver pessoas olharem para
ele, obviamente ponderando o que ele teria que eles não estariam vendo para
tornar razoável que uma mulher dessa qualidade ficasse com ele, fosse dele. Ele
sempre teve a aparência exata de sua idade. E ele também gostava de
vê-los pausar por estarem diante de alguém em seu nível de beleza física
lidando com pessoas de maneira muito mais agradável do que ela deveria fazer,
em suas experiências passadas com grandes belezas, que ela era, que ela era.
Esses eram momentos instantâneos, mas reais. Ela era uma democrata, uma
democrata espiritual. E então com mulheres, e homens gays também, ele teria o
momento em que eles sutilmente tentariam averiguar se era possível que eles poderiam
ter tido razão em sua primeira impressão que Iris não estava usando quase
nenhuma maquiagem. Existia um jeito em que eles alargavam seus olhos brevemente
e então focalizavam de novo. Iris não usava quase nenhuma maquiagem.
Ele queria o toque de seu respirar em sua garganta. Quando
eles abraçavam depois de ficarem separados era isso que ele queria primeiro.
“Você é tão belo” ela falou
“É o que dizemos todos” ele falou, sendo irônico
Uma frase veio a ele eu sou o espelho em que você respira.
Não estava bem certa, no entanto. Se ele escrevesse poesia o que ele ia querer
era uma linha que unisse o segurar do espelho na boca e nariz de uma pessoa
amada em particular para ver se ela ainda estava viva com o espelho sendo o registro fixo de sua
beleza pessoal. Poderia a frase ser Eu sou o espelho para qual serve seu
respirar? Ele pensou. Não porque é ligeiramente sinistro. Não porque é
idiota. Era por isso que genialidade seria tão útil se a você tivesse. Iris não
tinha apreciação real de como ela era bela. Ela foi isolada disso pelo seu
passado, complicações de seu passado, e a ele faltava a genialidade para
adentrar com um impacto e dizer Olhe o que você é! Olhe! e vê-la acreditar.