(Era para ter sido escrito um dia
ou dois depois do primeiro post: eis um calendário exato da procrastinação, a
distância desse de agora pro anterior.)
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Toda tradução é uma traição, blá
blá blá, mas o caso de Suttree é realmente interessante por suas especificidades
estéticas. Discuti uma questão parecida com essa num post de uns anos atrás
sobre a dificuldade inerente/estrutural de traduzir Infinite Jest: alguns romances
não apenas usam o idioma em que foram escritos, eles realmente existem dentro
de sua linguagem. O inglês não é meramente o meio, é como se fosse parte do
corpo da obra. Colocá-lo em outro idioma não é colocar um cantor de voz
diferente para a mesma música, é escolher outro instrumento: um piano não
consegue alongar suas notas, um clarinetista não tem as duas mãos produzindo
notas diferentes.
No caso do Infinite Jest era a
maleabilidade prática maior do idioma de origem que atrapalhava sua existência
mais assemelhada no português (vale dizer mais uma vez que a tradução do
Galindo me pareceu ser a melhor possível), já o problema com o Suttree é de
ordem histórica. O inglês é um idioma vira-lata: estrutura meio germânica,
léxico em grande parte do latim, por influência histórica francesa.
Frequentemente existem duas palavras que expressam a mesma ideia, com uma sendo
originária do latim, tida como a mais rebuscada ou erudita. Lembro-me dos
coleguinhas da sexta série da época em que morei por lá com a piadinha “we saw
you masticate yesterday at lunch”, apostando na semelhança sonora com
“masturbate”. Saber que aquilo era mastigar, ou “chewing”, no inglês comum, era
coisa para os iniciados, quem já tinha ouvido a piadinha antes. É até engraçado
que um leitor brasileiro às vezes vai ter mais facilidade do que um americano
com o vocabulário do Infinite Jest, por sua recorrente incursão nas versões
rebuscadas das palavras.
Suttree, com todo seu tutano
primitivista indisfarçável, trabalha na linguagem a questão da superficialidade
do que temos e tentamos ter de civilização. Os adjetivos no livro
frequentemente são substituídos com criações verbais aglutinadoras bastante
transparentes, como certo momento em que uma máquina é descrita como
“spiderlike” (em vez de arachnid – palavra do latim). Não se trata de uma
rejeição completa e purista das palavras dessa origem: elas aparecem, mas em
contexto em que o que elas tem de estrangeiro fica radicalmente ressaltada, frequentemente
em tom científico, tentativa humana fracassada e meio-fake de domar a natureza
e o mundo circundante. Temos uma divisão de autenticidade/naturalidade versus inteligência/artificialidade
expressada na forma como o romance respira. O tradutor para o português não tem
caminho certo para onde ir, nesse quesito: as palavras arcaicas ocasionalmente
desenterradas pela narrativa provavelmente soarão como erudição bacharelesca, e
não retiradas de paredes de cavernas, de fogueiras há milênios apagadas e de
rastros milagrosamente descobertos.
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