segunda-feira, 18 de julho de 2016

Adendo ao post sobre Suttree - a linguagem

(Era para ter sido escrito um dia ou dois depois do primeiro post: eis um calendário exato da procrastinação, a distância desse de agora pro anterior.)
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Toda tradução é uma traição, blá blá blá, mas o caso de Suttree é realmente interessante por suas especificidades estéticas. Discuti uma questão parecida com essa num post de uns anos atrás sobre a dificuldade inerente/estrutural de traduzir Infinite Jest: alguns romances não apenas usam o idioma em que foram escritos, eles realmente existem dentro de sua linguagem. O inglês não é meramente o meio, é como se fosse parte do corpo da obra. Colocá-lo em outro idioma não é colocar um cantor de voz diferente para a mesma música, é escolher outro instrumento: um piano não consegue alongar suas notas, um clarinetista não tem as duas mãos produzindo notas diferentes.

No caso do Infinite Jest era a maleabilidade prática maior do idioma de origem que atrapalhava sua existência mais assemelhada no português (vale dizer mais uma vez que a tradução do Galindo me pareceu ser a melhor possível), já o problema com o Suttree é de ordem histórica. O inglês é um idioma vira-lata: estrutura meio germânica, léxico em grande parte do latim, por influência histórica francesa. Frequentemente existem duas palavras que expressam a mesma ideia, com uma sendo originária do latim, tida como a mais rebuscada ou erudita. Lembro-me dos coleguinhas da sexta série da época em que morei por lá com a piadinha “we saw you masticate yesterday at lunch”, apostando na semelhança sonora com “masturbate”. Saber que aquilo era mastigar, ou “chewing”, no inglês comum, era coisa para os iniciados, quem já tinha ouvido a piadinha antes. É até engraçado que um leitor brasileiro às vezes vai ter mais facilidade do que um americano com o vocabulário do Infinite Jest, por sua recorrente incursão nas versões rebuscadas das palavras.


Suttree, com todo seu tutano primitivista indisfarçável, trabalha na linguagem a questão da superficialidade do que temos e tentamos ter de civilização. Os adjetivos no livro frequentemente são substituídos com criações verbais aglutinadoras bastante transparentes, como certo momento em que uma máquina é descrita como “spiderlike” (em vez de arachnid – palavra do latim). Não se trata de uma rejeição completa e purista das palavras dessa origem: elas aparecem, mas em contexto em que o que elas tem de estrangeiro fica radicalmente ressaltada, frequentemente em tom científico, tentativa humana fracassada e meio-fake de domar a natureza e o mundo circundante. Temos uma divisão de autenticidade/naturalidade versus inteligência/artificialidade expressada na forma como o romance respira. O tradutor para o português não tem caminho certo para onde ir, nesse quesito: as palavras arcaicas ocasionalmente desenterradas pela narrativa provavelmente soarão como erudição bacharelesca, e não retiradas de paredes de cavernas, de fogueiras há milênios apagadas e de rastros milagrosamente descobertos.

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