domingo, 25 de novembro de 2012

Música (2)

(com todas as cordas)

Barba enganada?

O post de hoje tem origem neste texto: http://etudeslusophonesparis4.blogspot.fr/2012/11/barbas-pouco-confiaveis.html .

Eu gostei do romance e a Elvira não gostou. Parece que a prática cabível seria de dar os ombros e ignorar a existência ou qualquer validade do texto ou tentar escrever uma resposta furiosa-nas-entrelinhas dos porquês ela estaria errada. Afinal, o campo literário seria feito de disputas, não? É, não sei se acredito tanto nisto, ou pelo menos que eu teria interesse em participar desta maneira. O texto é bem escrito, bem argumentado, cita as coisas com pertinência. Certamente tem bem mais propriedade do que as primeiras impressões que postei aqui umas semanas atrás.

Conversei brevemente com ela pelo twitter hoje, esbarrando toda hora no limite dos 140 caracteres, então resolvi fazer um post aqui, já que seus comentários inspiraram algumas ideias novas. 

(tenho como certeza de que os livros não terminam quando a gente lê a última página; quando a obra não é imediatamente esquecível, a gente vai relendo mentalmente, usando nossa memória faltosa, pelo resto da vida. Por isso é acho a resenha-de-lançamento é um desafio interessante porém bizarro, quase artificial, como um violonista tocando sem certas cordas)

(spoilers abstratos: não digo o que acontece no final da história mas vou esmiuçando o que vejo nas entrelinhas)

(Não vou escrever necessariamente para rebater o que a Elvira disse, este post é meio que escrito pensando em voz alta.)

Vi no twitter os primeiros comentários da Elvira sobre a leitura do livro do Galera e já imaginei que ela não fosse gostar. O livro de Galera não é um livro intelectual, crítico, como Elvira Vigna é (e não dou valor de "qualidade desejável" automático a essas duas palavras). É um livro de historinha, bem quadrado, e quem leu qualquer livro da Elvira sabe que não é bem este o caminho que ela trilha. 

Acho que um obstáculo central é a deliberada (ou aparentemente deliberada) falta de vontade de crítica em Galera. O que há é uma vontade de simplesmente ver, em vez de ver defeitos, construir, no lugar de refazer (melhor, diferente). Não é uma postura tão popular nos meios acadêmicos, ainda mais brasileiros. O intelectual no Brasil sempre se fez pela vontade de mudança diante da realidade tétrica do país (talvez um pouco menos hoje já que dá pra pobre comprar iPhone). Iniciativas intelectuais precisariam pautar por caminhos de mudança, ou crítica apontada e delineada, como quem sempre pergunta "o que há de errado?"

Vejo inteligência e sensibilidade na literatura de Galera, mas pelo que vejo ele não negocia com este repertório. Este caminho consagrado é um que conseguiria responder sem titubear a pergunta "no fim das contas, o que é que você está dizendo com este livro", e imagino o Galera meio perplexo se alguém chegasse a ele com esta pergunta. O livro simplesmente é.

Como exemplo deste aspecto de sua obra, acho que é possível citar a questão do sexo , sempre presente em seus livros mas sempre (pelo que consigo lembrar) sem qualquer libertação do cristianismo pudico. As mulheres no livro de Galera não aparecem gloriosamente libertas das amarras de casar virgens, ou de só fazer sexo por amor, depois de vários encontros "para ver se o cara é mesmo sério". Elas só trepam. Não são elogiadas como inteligentes /libertas/certas por fazer isto. Elas só fazem, com amor, sem amor, gozando e às vezes não. É algo que existe.

O método da obra dele é como se a todo tempo o autor falasse "olha".

(claro que não defendo que o autor é isento, imparcial, e "mostra a realidade como ela realmente é", etc etc, Não estou falando que é errado criticar as escolhas do livro ou o método do autor, só acho interessante notar o que há de diferente de muito que foi feito em literatura e crítica no Brasil)

É meio estranho lidar com um método estético como este. Posso citar como referência o reverenciado  (por mim e pelo Galera) Cormac McCarthy. Como dá pra perceber, gosto de falar de literatura, de tentar destrinchar um pouco o que acho de interessante, etc etc. Fico (se me deixarem)  horas e horas falando sobre o David Foster Wallace, sobre o Coetzee, sobre o Machado de Assis, sobre o Sérgio Sant'Anna. Com o Cormac McCarthy, só posso dizer que o cara é foda*. É outro cara que ressalta o que há de material, de plástico, (só que em um nível bem superior ao de Galera. Não que seja demérito a Galera estar aquém do Cormac, estaríamos (quase) todos fodidos se isto fosse um xingamento). Blood Meridian, por exemplo, é um livro sobre chacina contínua, genocídio mesmo, sangue e ossos e cadáveres, sem qualquer  dicção do medo ou do nojento, e em nenhum momento vemos qualquer crítica, explícita ou implícita, na narrativa. O All the Pretty Horses passa um tempão falando de coisas que decorreram da revolução mexicana, e o tratamento da coisa é quase como se tivesse sido um evento do clima.

* O palavroso DFW falando sobre o Cormac: http://www.salon.com/1999/04/12/wallace/ : "Don't even ask".

Não vejo o Galera como um seguidor/copiador do Cormac (existe um interesse pela oralidade bem diferente do laconismo quase bizarro dos diálogos do Cormac, por exemplo, e também uma vontade de registro de contemporaneidade e pequenas banalidades que não são as banalidades-levado-ao-grau-cósmico tudo-é-banal/genocídio-é-banal do Cormac. Quase tudo no Cormac é no grau cósmico), e sim como dois autores de sensibilidade produtiva semelhante. A obra de Galera é como uma foto (proposital, sim, autoral, sim, escolhida, sim) daquilo que ele viu. Uma foto muito bem escrita.

Mencionei este aspecto não-intelectual do livro para Elvira como indicativo de que ela não fosse gostar e ela falou que o novo livro do Lísias, sobre suicídio, não é um livro intelectual mas que ela gostou. A questão que vejo aí é que o livro de Lísias é pessoal, e o livro de Galera é impessoal. Quase tão impessoal quanto o Mãos de Cavalo (e tenho dificuldade em pensar em um livro mais frio na literatura brasileira, tirando os poemas do Cabral). O problema é que vejo como sendo os momentos mais pessoais do Barba como os piores, em que  se fala (em vez de se encenar) sobre o budismo, personagens conversando só para o Galera falar pro leitor a opinião dele (não muito comum, não desprovida de interesse, mas falada, meio achatada), e os mais distanciados, descrições de cenário e etc, da ação, como sendo os melhores. Como falei antes, um autor que me parece mais produtivo no caminho da especificação/especialização do que na vontade de abarcar todas as possibilidades presentes no texto.

(achei meio maldoso chamar a Jasmim de de "recepcionista de lojinha de turismo que fala sobre mito" , o que dá a ideia de algo meio artificial/incomum/idiossincrático (como me parece a prostituta que lê Nietzsche), quando o que vi foi uma mestranda que tira uma grana naquele servicinho turístico. Gostei da composição da personagem dela)

No final do texto da Elvira há um certo pedido/vontade de explicitação do processo ficcional, de abertura para o diálogo, e de fato isto não existe. 

Pelo que transitei e transito pelo mundo acadêmico/intelectual, vejo que esta é outra constante. O intelectual quer falar, quer discutir. Sim, isto é valoroso (e este post é uma vontade de conversa), mas de novo é uma ausência em Galera que me parece deliberada, proposital. Há uma ideia meio difundida no meio intelectual que diz que um livro hoje em dia que não explicita seus quês de artifício tem algo de mentiroso (sem qualquer conotação lúdica à palavra), que haveria aí uma vontade de objetividade, imparcialidade, superioridade implícita em procedimentos narrativos "naturais" ou "naturalizados". Que mostrar os andaimes é como que a coisa honesta a ser feita.

Será mesmo assim? A metalinguagem me parece interessante para enxergar os procedimentos e reconhecê-los como tal, mas seu encenamento artístico nem sempre é produtivo, não vejo que ela deve ser tomada como método contínuo. Os trechos sobre literatura no Cordilheira são os mais fracos do livro, a conversa do escultor em Cachalote eu achei um saco. Como postei anteriormente, é um autor do material, e não do abstrato. É uma coisa valorosa de se ter em consideração, mas nem sempre presente de forma explícita. E o que dessa predominância dos andaimes (no meio intelectual, nos romances literários, metalinguísticos, lidos no mundo acadêmico) expostos não teria de mera repetição?

Acho que este encobrimento é uma característica importante do texto: o livro é cheio de silêncios implícitos, meio fora de moda diante de tantos silêncios explícitos em outros textos.No lugar de falar tanto sobre a dificuldade de falar, sobre as imposições do falar, simplesmente se deixa os silêncios em silêncio, e achei eles suficientemente fortes desta forma, diria até mesmo perfeitamente cabível. 

O romance todo é uma coisa que não quer conversa (apesar de ter tantos diálogos) porque a enxerga como não sendo possível, não é só o pai do início do livro que acha que é impossível convencer alguém de qualquer coisa (um publicitário premiado, vale lembrar). O personagem ao fim chega a explicitar: não temos escolha, mas precisamos agir/pensar como se tivéssemos. É o radicalismo de um personagem radicalista, mas o que se sobressai do espírito da obra (e do Mãos de Cavalo, que narra uma tentativa fracassada de construção pessoal) é a de que os principais eventos de nossa vida estão fora de nosso controle, que somos arremessados para a existência com muito de nossas vidas já decidido por nós (raça, sexo, início social, impedimentos neurológicos, mundo com o qual temos que negociar). Temos um espaço de movimentação para não sermos sufocados (alguns de nós, pelo menos, e no livro nem isto é uma certeza), mas as questões e impasses que nos são impostos não são de escolha nossa. Não é tanto um destino que em algum lugar está traçado para nós (embora o livro negocie de forma incomum com o mítico...) quanto o reconhecimento de uma fraqueza inescapável. É um livro de desespero tranquilo.

Um livro que se mostrasse como construção seria um enfraquecimento destas entrelinhas (e linhas, quando o personagem fala). Construção não implica escolha?

Encerrando, vou rebater de forma mais pontual uma crítica da Elvira: é verdade que o livro é construído em dualismos, mas a meu ver eles não são "falsos no livro", e sim borrados: há a separação da vida urbana em relação a "vida afastada", mas qualquer paraíso possível de Garopaba é minado por uma corrente subterrânea de sinistro que permeia o livro, de segredos que ninguém fala, de cochichos que comentam todo movimento numa vígila incômoda. O próprio protagonista com sua condição neurológica ficaria bem mais bem servido no anonimato da urbe. O duelo do homem versus a natureza é feito, para nós, de vitórias sucessivas e derrotas aleatórias, que tiram o caráter definitivo das vitórias mas que não as destrói: o protagonista é exímio nadador e morre afogado. Continua tendo sido grande nadador. Não há lado que se sobressai, certo e errado claros, e sequer vejo uma tentativa de equilíbrio. A do destino, por exemplo, devemos reconhecer o destino e fingir que ele não existe. Qual a solução? A solução é que não existe solução.

(sobre a questão de gênero, no livro, claramente pertinente, não tenho o que dizer. Acho o livro curioso neste aspecto, mas não tenho leituras no assunto para falar muito. Talvez um dos privilégios de ser homem-branco é que o guideline genérico "don't be an asshole" me pareceu suficiente para lidar com questões assim. O que um homem heterossexual pode falar disso? A resposta não é "nada", mas eu não sei o que é. O livro parece ser algo neste sentido, mas não sei ainda se acho ele bom ou ruim por este lado)

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Post-scriptum mal escrito: Ah, se alguém se interessou em ler o Cormac, leia em inglês. Estou lendo "The Road" (bom, mas não é dos melhores) e por curiosidade abri a tradução brasileira e me desagradou logo no primeiro parágrafo. É uma história pós-apocalíptica, e a abertura do livro escreve como cada dia é mais cinza e frio que o anterior escrevendo "like the onset of some cold glaucoma dimming away the world". Não lembro exatamente das palavras da tradução, mas sei que foi colocado a palavra "progressivamente" no meio. "Progressivamente", pelo menos pra mim, ressoa como uma palavra do mundo moderno, da técnica, e a linguagem do Cormac é toda bíblica, mítica, épica (e todas essas coisas fora-de-moda "impossíveis hoje em dia"). E no Cormac a linguagem é só quase tudo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Entre Aspas, com tradução


Li faz alguns meses (já postei trechos desse livro) mas ontem de noite lembrei de um trecho foda (The Tunnel, William Gass):
“Do Rivers
She preferred me to begin at the base of her neck. I preferred to begin a bit higher up, on the shoreline of her hair. With my right forefinger slanted slightly to bring the nail into play, I would inscribe the course of a river – so gently, so slowly, it might ha
ve been a tear’s trail – running its convoluted way the length of Lou’s back, semicircling a buttock, and concluding in her crack, at a fulfillment one might call a delta.
Do rivers. That was the command. She would be lying only somewhat on her side. Do rivers meant she was happy, but wanted, now, to sleep. I would have to unspoon myself in order to obey, allow some space for the play of my arm. Then I’d trace the meandering of a little stream, or the sluggish flow of a broad expanse of water, depending on whether I was using the edge of a nail or the ball of my finger. Water, in our world, did not simply flow downhill, however. Rivers rose over shoulder blades; they turned up the slope of a buttock; they slid sideways, rippling over ribs, or subsided towards the small of the back as a raindrop does to create a puddle. Hydraulics didn’t matter; only the shape of the line, the speed of its passage, and the feel of the riverbed on Lou’s back made a difference to her, while I kept my mind on the meaning of its motion, because each river inscribed a message, at least in the beginning, when rivering was the summation of us – was what our love was – just as the expression “going to the river” meant making out, particularly canoodling out-of-doors, in a private corner of a park, or on a secluded sandbar, preferably one with handsome overhanging trees.”

Tentativa rápida de tradução:
Faça rios
Ela preferia que eu começasse na base de seu pescoço. Eu preferia começar um pouco mais em cima, na linha costeira de seu cabelo. Com meu indicador direito ligeiramente inclinado para trazer a unha para o ato, 
eu inscreveria o curso de um rio - tão levemente, tão lentamente, que poderia ser um rastro de lágrima – correndo seu caminho torcido pelo comprimento das costas de Lou, semi-circulando uma nádega, e concluindo em sua fenda, um encontro que poderia ser chamado de um delta. 
Faça rios. Era este o comando. Ela ficaria deitada apenas um pouco de lado. Faça rios queria dizer que ela estava feliz, mas queria, agora, dormir. Eu tinha que me desenconchar para poder obedecer, permitir algum espaço para o brincar de minha mão. Então eu traçaria o meandro de um riacho pequenino, ou o fluir preguiçoso de uma larga expansão de água, dependendo se eu estava usando a ponta da unha ou o dedo inteiro. Água, em nosso mundo, não fluía simplesmente morro-abaixo, contudo. Rios subiam por ombros, curvavam na inclinação de uma nádega, deslizavam para os lados, correndo sobre as costelas, ou se diminuíam na direção da parte de baixo das costas como uma gota de chuva faz para criar uma poça. Hidráulica não importava, só a forma da linha, a velocidade de sua passagem, e a sensação da bacia hidrográfica nas costas de Lou faziam uma diferença para ela, enquanto eu mantinha minha mente no significado de seu movimento, porque cada rio inscrevia uma mensagem, pelo menos no início, quando riar era a somação de nós – o que nosso amor era - apenas como a expressão “ir para o rio” queria dizer dar uns amassos, particularmente ao ar livre, em um pedaço privado de um parque, em um canto recluso, preferivelmente um com belas árvores com galhos pendendo por cima.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O monge e o sangue

O novo livro do Daniel Galera é ótimo. Escrevo este post poucas horas depois de ter terminado a leitura, ainda estou ruminando o romance um pouco, mas certamente tem muita coisa de interesse nele.  O James Wood começa a falar do Brief Interviews with hideous men do DFW citando vários trechos do livro, para ressaltar seu estilo, seu tom, seu interesse. Auerbach, com maior profundidade do distanciamento histórico, faz o mesmo. Acho um bom método.

[Beta é a cadela do protagonista, o lugar é Garopaba, cidadezinha-linda-turística dez vezes mais cheia e cara no verão que em outras estações (em outro trecho o narrador ou um personagem fala que existe verão e o resto é inverno]

"Volta pela casa andando e empurrando a bicicleta pelas ruas que contornam a lagoa das Capivaras. A luz dos postes tinge de amarelo oleoso o carpete de salvínias que cobre quase toda a superfície da água poluída. Um turbilhão de mosquitos paira em cima do pequeno trapiche apodrecido. Cachorros imensos começam a sair do mato de um terreno baldio e ele enfia o dedo na coleira de Beta por precaução. Muitos integrantes da matilha são cães de raça, rottweilers, pastores alemães ou cruzamentos nos quais reconhece traços de collies e labradores, todos com a pelagem eriçada de suor e frio, imundos e magricelas, com as línguas de fora, percorrendo a noite sem destino aparente como se despistados por um líder fantasmagórico. São figuras típicas da cidade. Cães de grande porte abandonados por veranistas que vivem a centenas de quilômetros dali. Seus instintos não parecem capazes de sufocar  por completo o desejo impossível de voltar para casa"

É um livro sobre a relação da realidade (e seus momentos banais e curiosos) com o mito localmente construído, as distâncias e as conexões entre essas duas coisas, sobre a vontade e as dificuldades de se  isolar, de fugir, sobre fidelidade e as duras penas da coerência. Não é este o enredo do livro, mas é um livro cujo espírito ou corrente subterrânea me faz pensar em uma das poucas frases realmente bonitas ditas pelo Woody Allen (que na maioria das vezes se contenta em usar sua inteligência simplesmente para ser espertinho), algo do tipo "a única coisa que é para sempre é o amor não-correspondido".

A estrutura do livro não é forte como a de Mãos de Cavalo, mas também não é fraca como a de Cordilheira. É um livro longo, às vezes arrastado, mas a lentidão serve seu propósito dentro do todo da coisa. Para mim ficou claro que o tamanho do texto não fez com que o autor deixasse de pensar a utilidade interna de cada pedaço da narrativa.

Meu primeiro instinto seria questionar o valor das discussões sobre budismo e de narrar o contínuo rechaçamento da doutrina pelo protagonista (soa como uma coisa que tá meio que explicando o livro no meio do livro, o que geralmente tira a graça da ficção), sinto a vontade da arrogância do crítico de tomá-la "objetivamente" como uma parte menos interessante da narrativa, mas me dou conta que esta antipatia é uma coisa das minhas leituras mesmo: quando li Ana Kariênina achei um saco todas as discussões sobre o futuro da Rússia, fui ler os Irmãos Karamazov e larguei no início porque não gosto muito quando a ficção vira palco de troca direta e explícita de ideias (o único que me agrada nisto é o Delillo, que faz de forma bizarramente atravessada, numa ironia mais profunda do que a ridícula/engraçadinha que hoje nos contamina). Não taxo de defeito do livro, portanto, especialmente considerando que é uma coisa que faz bastante sentido (talvez até demais) com o resto da história, coloco mais como uma coisa que não gostei tanto. De novo, o poder do Galera está no lirismo e na materialidade. Acho que perto disto o que há de abstrato é fraco. Não é propriamente ruim, só fica em desnível com a qualidade marcante do resto. Felizmente, este é um livro bem calcado no material, no físico.

No meu post sobre Cordilheira eu tinha falado do título, de como eu o achava interessante. Tinha um apelo ligeiramente trash, mas sabendo que o autor estava longe (felizmente) da estética do kitsch ou de ironias tristes de risinho de canto de boca, a impressão inicial era a de um desafio lançado logo na capa. Como escrever um romance straight-face e inteligente com um título deste? Tendo lido, fica o gosto meio ruim de um apelo mais mercadológico para a escolha, porque certamente é um título que chama bastante a atenção na estante da livraria ou em menções en passant, e embora não seja completamente descabido dentro da narrativa, acho que era possível encontrar um título melhor para o livro. A calmaria (necessária) da primeira parte do livro, do protagonista estabelecendo sua rotina no lugar novo é lido com uma sobrancelha meio erguida, quase fazendo com que o leitor feche rapidamente o romance para verificar na capa se o título é aquele mesmo. Sem contar que (como tem um pouco de spoiler, continuo no comentário).

Talvez no futuro eu consiga tirar um texto mais coerente e detalhado dessa leitura. Há uma metáfora interessantíssima (ou pelo menos alguns desdobramentos mais profundos) na condição neurológica do protagonista, e também há terreno fértil para um pensamento sobre o que se entende por masculinidade nos dias de hoje e no passado. No momento estou só naquela satisfação meio silenciosa de ter acabado de ler um bom livro.

domingo, 11 de novembro de 2012

Abre aspas 6


Ainda estou na página 100 (final de semana de preguiça, como a maioria) mas estou gostando do Barba Ensopada de Sangue, do Daniel Galera:

(os diálogos não são marcados com travessão, estilo Cormac. É um pai falando com o filho sobre seu suicídio)

"Eu vou me matar amanhã.
Pensa sobre o que acabou de ouvir por um bom tempo, ouvindo a respiração descompassada sair em curtos disparos pelas narinas. Um cansaço imenso cai sobre seus ombros de repente. Enfia a foto do avô no bolso, seca as mãos na bermuda, se levanta e caminha em direção à porta da rua
Volta aqui.
Pra quê? O que tu quer que eu faça depois de ouvir uma merda dessas? Porque de duas uma, ou tu tá falando sério e quer que eu te convença a mudar de ideia, o que seria a pior sacanagem que tu já me fez na vida, ou tá tirando uma da minha cara, o que seria tão sem noção que prefiro nem descobrir agora. Tchau.
Volta, porra.
Fica parado ao lado da porta, olhando para trás, para o piso triste de lajotas de argila rosada separadas por listras de cimento, para a samambaia viçosa tentando escapar de um xaxim pendurado ao teto por finas correntes presas a um gancho, para a atmosfera perene de fumaça de charto que habita a sala com sua consistência invisível e cheiro adocicado e estranhamente animal.
Não tô brincando e não quero que tu me convença de nada. To te informando de uma coisaq ue vai acontecer.
Não vai acontecer nada.
Entende o seguinte. É inevitável. Decidi faz semanas num momento da mais pura lucidez. Eu tô cansado. Tô de saco cheio. Acho que começou com aquela cirurgia de hemorroida. No meu último checape o médico viu os exames e me olhou com uma cara de morte, de decepção por toda a raça humana. Tive impressão que ele ia se demitir da minha causa como se fosse um advogado. E ele tem razão. Tô começando a ficar doente e não tô a fim. Não sinto mais o gosto da cerveja, os charutos tão me fazendo mal e e não consigo parar, não tenho vontade nem de tomar Viagra pra fuder, não tenho nem a nostalgia de fuder. Essa vida é comprida demais e não tenho paciência. Viver depois dos sessenta, pra quem teve uma vida como a minha, é uma questão de teimosia. Respeito quem investe nisso, mas não tô a fim. Fui feliz até uns dois anos atrás e agora quero ir embora. Quem acha errado que viva até os cem se quiser, desejo sucesso. Nada contra."

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Biografado

Esse fim de semana (e uns dias antes, já que andei meio atrapalhado) foi tempo de leitura da biografia do David Foster Wallace. A opinião a respeito do livro tem sido meio mista: o cara de fato revela muitas coisas que leitores assíduos (semi-enlouquecidos) da obra do Wallace e dos destroços surgidos de sua morte (flerte com a fulana do Prozac Nation, etc) não conheciam. O texto, também, é bem escrito, escrito com sensibilidade e verdadeiro interesse no assunto e na pessoa. No entanto, há bastante desigualdade no tempo que se passa com certas partes: pouca coisa da infância de Wallace é desenvolvida, em especial o relacionamento meio problemático/bizarro que tinha com a mãe, elemento quase tão ou talvez até mais importante para sua formação pessoal quanto seu alcoolismo e sua carreira brilhante. A infância é narrada como uma espécie de idílio lindo, de pais segurando as mãos lendo Ulisses, e de repente ela sai de casa, e de repente Wallace meio que odeia-e-ama a mãe. O menino é tratado com amor, mas quando se muda para a faculdade é como se não tivesse mais família... A elipse é recurso cabível quando se escreve literatura, ficção. Pra biografia, bem menos.

Quem se interessa por Wallace se beneficia de ler, e é uma leitura ágil, agradável (na medida em que é possível dado o final da história), mas quem se interessa por Wallace já comprou ou já vai comprar o livro. Está longe de poder querer ser o livro definitivo sobre o cara.
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"Soon afterward, he got so mad at her that he threw her coffee table at her. He sent her $100 for the remnants. She had a friend who was a lawyer write back to say she still owned the table, all he'd bought was the "brokenness""

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Poemas da Mary Karr, ex-namorada/noiva/mulher-problema da vida de Wallace, sobre o suicídio dele:
Não sei o que pensar desses poemas.

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Lendo resenhas na Amazon, bizarro ver gente lendo a biografia do cara e resenhando e mencionando que não leu nada da ficção dele. Uma dessas figuras estranhas reclamou que o livro era ruim porque não dava a ver por que o cara era tão bom quanto dizem... Resenhas reclamando que o biógrafo opina demais, outras reclamando que ele opina de menos... Lição (sempre repetida, sempre necessária) de que é impossível agradar a todos.

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Uma rápida máxima, pensada neste momento: o Infinite Jest é um livro alcoólatra, o The Pale King é um livro ex-alcoólatra.  O triste é que The Pale King é um livro impossível...

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Segunda Resenha para o Jornal Rascunho


Sérgio Sant'Anna, Páginas sem glória.

A título de curiosidade, alguém conhece um grande autor que tenha publicado um grande livro depois dos 70 anos? Saramago não conta, já que ele começou a carreira dele já aos 50...

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Iniciante / Consagrado

Talvez foi maldade, mas li no mesmo dia os ótimos quadrinhos de André Valente ( http://oandrevalente.com/ ) "Não Fui Eu" e "Batima" e a nova obra do Chris Ware, o Building stories.

Do que li de André Valente, não tem nenhum outro quadrinista no Brasil que trabalhe o elemento visual como ele. Um jovem pai tenta fazer dormir seu bebê e a sequência cronológica é desenhada em forma de espiral que progride para o centro, e não nas horizontais empilhadas consagradas na forma do quadrinho, dando a entender uma passagem de tempo que se torna mais forte com cada minuto insone... Batman mente para a mãe em uma carta falando que está tudo bem, enquanto os tétricos desenhos mostram sua rotina de funcionário de McDonalds, em dissonância intensa.

Mas Chris Ware é covardia. Até arrisco dizer que Chris Ware acaba tornando o meio dos quadrinhos menos interessante, com ele vivo e produzindo não dá pra ter aquelas inúteis e intermináveis conversas sobre "quem é melhor", todas adoravelmente veementes como se fosse possível determinar isto de maneira definitiva e objetiva.... quando se fala de quadrinhos, a meu ver não tem discussão, Chris Ware é mestre. Tem que esperar ele morrer para podermos debater neste tão importante campo.

Conversei brevemente com André e tinha falado que o único defeito que tinha visto em sua coletânea "Não Fui eu" é uma mistura de histórias de humor escrachado com outras de melancolia mais fina, mais sutil. São todas histórias bem curtas, e o registro da leitura acaba oscilando feito sismógrafo em tragédia tectônica. Imaginei que a coletânea não tivesse sido muito planejada como uma unidade de leitura, e sim a reunião do trabalho que ele achava mais interessante de publicar, já que é a primeira publicação de um cara bem jovem, e tudo mais. Na conversa, ele acabou dizendo que tinha sido mais ou menos isso, vontade de publicar logo as coisas que ele achava de melhor qualidade. E de fato são muito boas, em sua maioria, só que não tem aquela coesão que acaba beneficiando o todo.

Depois, fui ler Building Stories. Para quem não conhece:
É uma caixa com 14 folhetos/livros/posteres/jornais/cadernos separados em que Ware conta a história de uma mulher que perdeu uma perna em um acidente ainda criança e que (em alguns dos folhetos) mora no terceiro andar de um prédio sem elevador. Narra sua solidão, seu casamento, maternidade, infância, etc. Não existe ordem definida de leitura dos fascículos. 

É uma obra que chega a ser desagradável tentar descrever, já que precisamos usar adjetivos já gastos (sensacional, fascinante, maravilhoso, etc etc) com coisas que não são tão... É como falar que o acervo do Louvre é "grande", ou que a Nona de Beethoven é "muito boa".

Dentre os folhetos/etc estão dois falando a história de uma abelha, e em um deles em especial me fez lembrar do comentário que fiz ao André, essa coisa de um registro narrativo que destoa: é justamente neste livrinho vermelhinho com um círculo preto no centro que aparece na imagem acima (como não colocá-lo em cima de tudo?). Dentre a melancolia da solidão e incertezas da protagonista, temos a narrativa neurótica/obsessiva/ridícula (ou ridicularizada) de uma abelha, que me causou bastante incômodo (e não o incômodo-chique que tornou a palavra super-utilizada em discursos de  interpretação de obras artísticas). Mais adiante, em um momento de outro fascículo, consegui enxergar melhor o lugar deste livrinho vermelho e meio histérico entre os outros de qualidade tão imediatamente perceptível.

Estou há um tempo adiando escrever um texto rápido sobre a questão do clássico versus o contemporâneo, que o clássico já conta com certa pré-aprovação e que o contemporâneo o leitor tende a ter mais poder de decisão sobre aquilo que lê (não gostar de Machado de Assis é de certa forma uma ousadia. Não gostar de Ian McEwan é ok) e de como me agrada este aspecto do contemporâneo. Mas lendo agora o André Valente e o Chris Ware juntos, vejo que mesmo entre contemporâneos (para a desgraça de Valente, que disse "como eu posso querer ser cubista se Picasso ainda é vivo?") há também esta desigualdade na recepção, já que o desnível visto (depois corrigido) em Ware causou um impacto muito maior do que o em Não Fui Eu, puramente causado pela expectativa de ler uma obra de um autor consagrado (e por mim idolatrado) e um estreante...

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Só uma nota final, para minha interpretação de Jimmy Corrigan apresentada no evento sobre quadrinhos na UnB algumas semanas atrás eu acabei focando no final e no início do quadrinho, lembrando aquela máxima de que o início e o fim de uma obra narrativa são elementos particularmente marcados na obra, que se há alguma dúvida sobre algum sentido mais ou menos uno de tudo que se leu, basta olhar a forma como o autor começou e encerrou sua obra. Para Jimmy Corrigan, foi muito útil (os textos do evento em breve serão disponibilizados online, postarei aqui) para tentar ver que o livro tinha mais em seu fundo do que sua superfície (linda) de ladainha depressiva. Agora chega o Chris Ware, embaralhando as folhas, misturando tudo. Gênio cretino.