quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Conselho a quem for ver The counselor

Ainda que eu tenha gostado bastante do filme, acho bastante compreensível certa recepção negativa ao filme The Counselor, dirigido pelo Ridley Scott e de roteiro do grande Cormac McCarthy. O título do filme no Brasil teve como tradução mei trash porém mercadologicamente compreensível “O conselheiro do crime”, tentando trazer para as bilheterias o público Goodfellas/Godfather/etc. Curiosamente, acho que esta transição do título inespecífico do original (talvez só pra mim com sonoridade meio bíblica, sei lá) para o equivocado porém (para o espectador médio, imagino) comercialmente atrativo pode mostrar um pouco dos porquês da má recepção do filme por parte da crítica: o movimento mercadologicamente direcionado existente nesta tradução barateadora aparece também em algumas recepções decepcionadas do filme, já que o filme aparece sendo criticado por fracassar na tentativa de ser aquilo que ele apenas aparenta tentar ser e que na verdade nunca almejou alcançar.

Parece ser um filme normal, mas não é, é um filme que o Cormac McCarthy escreveu. Talvez as pessoas tenham ido meio desavisadas diante do sucesso anterior do No Country for Old Men (que ainda que seja uma história de final bastante atípico, tem uma estrutura bem simples de perseguição, presente em vários outros filmes) e do sucesso comercial do livro The Road (que também tem suas estranhezas, mas é muito carregado pelo amor filial, tanto que foi pro clube-de-livro da Oprah e tudo mais), mas o filme nada mais é do que uma história que é de se esperar do Cormac McCarthy, o ser humano como esta mistura triste de brutalidade e impotência, amargura e desespero, insignificância e maravilhamento.

Não sei como que a obra foi mercadologicamente apresentada nos EUA, mas aqui (e tinha até propaganda nos televisores da praça de alimentação do shopping) a coisa era toda baseada no star-appeal do elenco, um esquema “com vocês, ator X, ator Y, atriz Z”, etc. Compreensível, uma vez que é um número considerável de nomes grandes, mas ao mexer com o reconhecimento dos atores acaba-se por reforçar uma busca por reconhecer o filme diante de vários outros aparentemente parecidos: o desavisado (ou engabelado) entra no cinema querendo ver um filme de crime, como tantos outros ótimos já feitos antes. Ainda que de fato se trate de crimes os acontecimentos principais do filme, não é deles que se fala. O que se fala é de maldade.

(a partir daqui, spoilers, ou ESTRAGÕES, na ótima tradução que vi por aí pelas internets. Falando sério, nesse filme nem faz diferença saber o que acontece)

Diferente dos filmes de crime, aqui não se acompanha um enredo e seus acontecimentos. A ação desses acontecimentos até aparecem na tela, mas sem muita explicação: entendemos (se não nos distraímos) as coisas vários minutos depois do que elas acontecem, e não durante, e nunca isso se dá pela ação dos protagonistas, que vão apenas sofrendo os efeitos do que aconteceu muito longe de seus dedos. Esvazia-se qualquer elemento de surpresa e suspense da coisa, o que é o feijão-com-arroz do filme de crime, e ressalta-se sempre a perplexidade (outro substantivo abstrato importante pra obra do McCarthy, pode botar na listinha dois parágrafos acima). Os acontecimentos vão fugindo (ainda que brevemente) da capacidade do espectador de acompanhá-los de forma comparável à maneira como o plano do protagonista vai se distanciando de seu controle.

(vamos comparar com o Breaking Bad, por exemplo, que trata muito de crime: acompanhamos cada reviravolta com o cuidado de estudiosos de xadrez diante de uma partida elucidativa. Qualquer mistério serve apenas para realçar o suspense e aumentar o efeito de uma posterior revelação. Nenhum entendimento posterior em The Counselor vem acompanhado daquele arrá agradável, e sim um “olha, eu acho que é isto...”, e mesmo um entendimento possivelmente equivocado do encadeamento dos eventos não faria tanta diferença para o principal do filme, que são os monólogos)

É um filme em que até acontece muita coisa, mas nunca por ação direta dos personagens principais. Eles não puxam o gatilho, e nem aparece eles tomando a decisão de mandar ou telefonando para mandar puxar o gatilho. Só recebem a notícia que deu tudo errado, e reagem fugindo. Além disso, o que eles fazem é falar uns com os outros sobre como o mundo é um lugar hostil e horrível. E na linguagem bizarra e pomposa do McCarthy.

A linguagem pomposa (coisas do tipo “você há de encontrar”, o que não é uma citação direta , mas a coisa segue nesse espírito) aparece nos romances dele na voz de um personagem particularmente marcado (como O Juiz Holden, no Blood Meridian) ou nas descrições de cenário, servindo de contraste com os diálogos majoritariamente lacônicos, de falas monossilábicas. Como no filme não vai ter narrador hiper-descritivo como no texto dos romances, e neste caso não há um personagem só que agregue valor de estranheza incomum (como o Chigurgh do No Country for Old Men), a coisa se dissemina, causando dissonância de verossimilhança na coisa, elemento particularmente importante se de novo retornarmos ao campo de expectativas do filme de crime. Como que este lorde das drogas mexicano vai conseguir falar tão incrivelmente a respeito da dor da perda, etc. Se abraçarmos a estranheza do filme como um todo, não nos distraímos com essa dissonância e aproveitamos de verdade a beleza de cada frase.

É um filme, portanto, a ser comparado não com os Goodfellas/Departed da vida, e sim com o filme anterior roteirizado pelo Cormac, o Sunset Limited. Eu li só umas duas ou três peças de teatro medievais durante minha graduação em Letras, então não sou qualificado para dar este qualificativo, mas li pelas internets a respeito de críticos descrevendo o Sunset Limited como uma peça medieval a respeito da alma humana, em que os personagens fazem pouco e discutem e ponderam muito. The counselor segue este caminho, também. Um filme para se ouvir o que se diz, e não tanto para acompanhar o que acontece.

Não para dizer que o filme é uma obra-prima incrível: é de fato um pouco arrastado (os livros dele são lentos, mas um livro lento pode ser lido num ritmo mais tranquilo enquanto o filme a lentidão cansa), com algumas cenas dispensáveis (como o diálogo sobre snuff films, ou a Cameron Diaz na igreja, querendo se confessar ao padre e estragando um pouco a graça do enigma da maldade ao falar um pouco do próprio passado). Visualmente, o filme é belíssimo, o que é previsível já que estamos falando do Ridley Scott, mas acho que a aparência do Barden e da Diaz caiu um pouco demais pro caricato, bandidos meio Disneyficados... para um filme sobre a maldade ter um visual tão ruim para os vilões e ainda conseguir se sustentar (mantendo longe os critérios de blockbuster que o filme mercadologicamente carrega consigo) é um poder surpreendente do texto.

Um comentário:

  1. Gostei do filme, dos diálogos, realmente é a cara do Cormac McCarthy, e ainda bem que o Ridley Scott não transformou o filme em um blockbuster, concordo em gênero, número e grau com o que fora descrito acima. Quanto ao título no Brasil, era simplesmente de se esperar algo do gênero mesmo, aqui se faz tudo pelas "verdinhas", deixando o expectador desinformado sem a mínima noção do que se trata qualquer filme apenas pelo título.

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