terça-feira, 19 de novembro de 2013

Continho do Barthelme traduzido

Gosto bastante desse conto do Barthelme. Por favor não me pergunte o porquê. Aí hoje resolvi traduzi-lo, meio descompromissadamente (com preguiça de pesquisar muito afundo em alguns termos mais difíceis, tipo as cores bizarras que aparecem listadas no meio do conto. Se alguém tiver alguma sugestão/correção, pode comentar aí embaixo). Talvez eu faça mais no futuro, achei divertido.

Montanha de vidro, de Donald Barthelme.

1.        Eu estava tentando escalar a montanha de vidro.
2.        A montanha de vidro fica na esquina da Décima Terceira Rua com a Oitava Avenida.
3.        Eu tinha alcançado a encosta inferior.
4.        Pessoas olhavam para cima na minha direção.
5.        Eu era novo na vizinhança.
6.        Não obstante eu tinha conhecidos
7.        Eu tinha amarrado pitões aos meus pés e cada mão agarrava robusto desentupidor de pia.
8.        Eu estava a uns duzentos pés de altura.
9.        O vento era amargo.
10.     Meus conhecidos haviam se juntado ao pé da montanha para oferecer encorajamento.
11.     “Cretino”.
12.     “Babaca”.
13.     Todo mundo na cidade sabe a respeito da montanha de vidro.
14.     Pessoas que moram aqui contam histórias a respeito.
15.     Ela é apontada para visitantes.
16.     Tocando o lado da montanha, sente-se um frio agradável.
17.     Espreitando para dentro da montanha, vê-se profundidades de azul-branco cintilantes.
18.     A montanha se sobrepõe por cima daquela parte da Oitava Avenida como um esplêndido e imenso prédio de escritórios.
19.     O topo da montanha some para dentro das nuvens, ou em dias sem nunvens, para dentro do sol.
20.     Eu desprendi o desentupidor de pia da mão direita deixando o da esquerda no lugar.
21.     Então eu estiquei e prendi de novo o da direita um pouco mais acima, depois do qual eu avancei minhas pernas para novas posições.
22.     O ganho era mínimo, não dava o comprimento de um braço.
23.     Meus conhecidos continuaram a comentar.
24.     “Filho da puta imbecil”.
25.     Eu era novo na vizinhança.
26.     Nas ruas havia várias pessoas com olhos perturbados.
27.     Veja por si mesmo.
28.     Nas ruas havia centenas de jovens aparecendo em portas, atrás de carros estacionados
29.     Pessoas mais velhas levavam seus cães para passear.
30.     As calçadas estavam cheias de merda de cachorro em cores brilhosas: ocre, cor de umbra, amarelo Marte, sienna, viridian, marfim preto, rose madder.
31.     E alguém tinha sido apreendido derrubando árvores, uma fileira de elmos danificados entre VWs e Valiants.
32.     Feito com uma motosserra, sem dúvida
33.     Eu era novo na vizinhança mas tinha acumulado conhecidos.
34.     Meus conhecidos passavam uma garrafa marrom de mão em mão.
35.     “Melhor que um chute na virilha”
36.     “Melhor que um cutucão no olho com um graveto afiado”
37.     “Melhor que um tapa na barriga com um peixe molhado”.
38.     “Melhor que um golpe nas costas com uma pedra”.
39.     “Ele não vai fazer splash quando ele cair, não?”
40.     “Eu espero estar aqui para ver. Molhar meu lenço no sangue”.
41.     “Tolo com cara de peido”
42.     Eu desprendi meu desentupidor de pia da mão esquerda deixando o da direita no lugar.
43.     E estiquei o braço.
44.     Para escalar a montanha de vidro, precisa-se primeiro de um bom motivo.
45.     Ninguém jamais tinha escalado a montanha em nome da ciência, ou em busca da fama, ou porque a montanha era um desafio.
46.     Aqueles não eram bons motivos.
47.     Mas bons motivos existem.
48.     No topo da montanha existe um castelo de ouro puro, e em uma sala da torre do castelo fica...
49.     Meus conhecidos estavam gritando para mim.
50.     “Dez contos que você se arrebenta nos próximos quatro minutos!”
51.     ... um lindo e encantado símbolo.
52.     Eu desprendi o desentupidor de pia da mão direita deixando o da esquerda parado.
53.     E estiquei o braço
54.     Estava frio ali a 206 pés e quando eu olhei para baixo não fui encorajado.
55.     Uma pilha de cadáveres de cavalos e cavaleiros fazia um anel no pé da montanha, vários homens morrendo e gemendo ali.
56.     “O enfraquecimento do interesse libidinoso na realidade tem recentemente chegado a um fim” (Anton Ehrenzweig)1
57.     Algumas perguntas aglomeravam-se na minha cabeça.
58.     Será que alguém escala uma montanha, passando por considerável desconforto pessoal, simplesmente para desencantar um símbolo?
59.     Será que os egos mais fortes de hoje ainda precisam de símbolos?
60.     Eu decidi que a resposta para essas perguntas era “sim”.
61.     De outra maneira o que eu estaria fazendo ali, 206 pés acima dos elmos motosserrados, cuja carne branca eu conseguia ver da minha altura?
62.     A melhor forma de fracassar a escalada da montanha era ser um cavaleiro de armadura cheia, um cujo cavalo tinha cascos que batem faíscas ígneas das laterais da montanha.
63.     Os seguinte-nomeados cavaleiros fracassaram ao tentar escalar a montanha e gemiam na pilha: : Sir Giles Guilford, Sir Henry Lovell, Sir Albert Denny, Sir Nicholas Vaux, Sir Patrick Grifford, Sir Gisbourne Gower, Sir Thomas Grey, Sir Peter Coleville, Sir John Blunt, Sir Richard Vernon, Sir Walter Willoughby, Sir Stephen Spear, Sir Roger Faulconbridge, Sir Clarence Vaughan, Sir Hubert Ratcliffe, Sir James Tyrrel, Sir Walter Herbert, Sir Robert Brakenbury, Sir Lionel Beaufort, e vários outros.2
64.     Meus conhecidos se moviam entre os cavaleiros caídos
65.      Meus conhecidos se moviam entre os cavaleiros caídos, coletando anéis, carteiras, relógios de bolso, favores de damas.
66.     “Calma reina no país, graças à sabedoria confiante de todos” (M. Pompidou)3
67.     O castelo dourado é guardado por uma águia de cabeça fina com rubis ardentes no lugar de olhos.
68.     Eu desprendi o desentupidor da mão esquerda, perguntando se
69.     Meus conhecidos desprendiam dentes de ouro dos cavaleiros ainda não-mortos.
70.     Nas ruas havia pessoas escondendo suas tranqüilidades atrás de uma fachada de pavor vago.
71.     “O símbolo convencional (feito o rouxinol, comumente associado com melancolia), apesar de ser reconhecido apenas por acordo, não é um signo (como o semáforo) porque, de novo, presumidamente desperta sentimentos profundos e é tido como possuidor de propriedades além do que o olho sozinho vê” (Um Dicionário de Termos Literários)
72.     Uma quantia de rouxinóis com semáforos amarrados às suas pernas passou por mim voando.
73.     Um cavaleiro em armadura rosa pálida apareceu acima de mim.
74.     Ele afundou, sua armadura fazendo pequenos sons de guincho contra  o vidro.
75.     Ele me deu uma olhada de soslaio enquanto passava por mim.
76.     Ele proferiu a palavra “Muerte”4 enquanto ele passou por mim.
77.     Eu desprendi o desentupidor da mão direita.
78.     Meus conhecidos debatiam a questão, qual deles ficaria com meu apartamento?
79.     Eu revisei as formas convencionas de alcançar o castelo.
80.     A forma convencional de alcançar o castelo são como segue: “a águia afunda suas garras afiadas na carne tenra do jovem, mas ele aguentou a dor sem um som, e agarra os dois pés do pássaro com aas mãos. A criatura aterrorizada o ergue alto no ar e começa a circundar o castelo. O jovem se segura bravamente. Ele viu o palácio reluzente, que por raios pálidos da lua parecia com uma lâmpada turva. E ele viu as janelas e varandas da torre do castelo. Sacando uma faca de seu cinto, ele corta ambas as patas da águia. O pássaro ascende alto no ar com um grito, e o jovem cai levemente para uma varanda larga. No mesmo momento uma porta é aberta, e ele viu um pátio cheio de flores e árvores, e ali, a linda e encantada princesa” (O livro de fadas amarelo)5
81.     Eu tinha medo
82.     Eu tinha esquecido os bandaids.
83.     Quando a águia afundou suas garras afiadas em minha carne tenra—
84.     Eu deveria voltar pelos Bandaids?
85.     Mas se eu voltar pelos bandaids, eu teria que suportar o desprezo de meus conhecidos.
86.     Resolvi prosseguir sem os Bandaids
87.     “Em alguns séculos, a imaginação Del (o homem) tem feito da vida uma prática intensa de todas as energias mais encantadoras” (John Masefield)6
88.     A água afundou suas garras afiadas em minha carne tenra.
89.     Mas eu agüentei a dor sem um som, e segurei os dois pés do pássaro com minhas mãos.
90.     Os desentupidores de pias permaneceram no lugar, em ângulos-retos na lateral da montanha.
91.     A criatura aterrorizada me ergueu alto no ar e começou a circundar o castelo.
92.     Eu segurei bravamente.
93.     Eu vi o palácio reluzente, que pelos raios pálidos da lua parecia com uma lâmpada turva; e eu vi as janelas e varandas da torre do castelo.
94.     Sacando uma pequena faca do meu cinto, eu cortei ambos os pés da águia.
95.     O pássaro ascendeu alto no ar com um grito, e eu caí levemente em uma varanda larga.
96.     Ao mesmo tempo uma porta é aberta, e eu vi um pátio cheio de flores e árvores, e ali, o lindo símbolo encantado.
97.     Eu me aproximei do símbolo, com suas camadas de significado, mas quando eu encostei nele, ele mudou apenas para uma linda princesa.
98.     Eu joguei a linda princesa de ponta cabeça montanha abaixo para meus conhecidos.
99.     Podia-se contar com eles para lidar com ela.
100.  Nem são águias plausíveis, de modo nenhum, nem por um momento.

1.        Uma citação (provavelmente) espúria de uma pessoa (provavelmente) fictícia.
2.        Nomes escolhidos ou inventados aleatoriamente para representar fidalguia inglesa.
3.        Ex-presidente da frança. A citação é provavelmente espúria
4.        “Morte”
5.        Uma de uma série de coletâneas de contos de fadas editadas por Andrew Lang.
6.        Poeta tradicional inglês (1878-1967); tornou-se poeta laureado da Inglaterra em 1930.

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