quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Suicídio como uma espécie de presente

(Continuo na onda de passar o tempo fazendo traduções. Este aqui demorou o dobro do tempo dos dois contos do Barthelme juntos, a linguagem é meio truncada, estranha. Tem umas coisas que não sei se ficaram lá essas coisas, mas de qualquer maneira aí vai. É um dos meus cinco contos favoritos.)

(Os números são notas de pé de página, que coloquei como pé-de-parágrafo para diminuir os scroll-downs)
Suicídio como uma espécie de presente (David Foster Wallace)
Uma vez havia uma mãe que de fato tinha bastante dificuldades, emocionalmente, por dentro.
Da forma como ela lembrava, ela sempre tinha dificuldades, mesmo quando criança. Ela lembrava de poucos dos específicos de sua infância, mas o que ela podia lembrar eram sentimentos de auto-desprezo, terror , e desespero que pareciam estar com ela sempre.
De uma perspectiva objetiva, não seria impreciso dizer que esta futura mãe teve umas merdas psicológicas bem pesadas colocadas em cima dela quando tinha sido menininha, e parte desta merda seria qualificável como abuso dos pais.  Sua infância não tinha sido tão ruim como algumas, mas não tinha sido nenhum piquenique. Tudo isso, embora preciso, não seria exatamente o ponto.
O ponto era que, de uma idade tão inicial quanto ela podia se lembrar, esta futura mãe se odiava. Ela via tudo na vida com apreensão, como se cada ocasião ou oportunidade fosse alguma espécie de exame terrivelmente importante para o qual ela tinha sido preguiçosa ou burra demais para se preparar adequadamente. A sensação era a de que como se uma nota perfeita em tal exame era necessária para poder impedir alguma punição estilhaçante.1 Ela se aterrorizava de tudo, e ficava aterrorizada de demonstrar isto.
1) Os pais dela, a propósito, não batiam nela e nem mesmo a disciplinavam, ou a pressionavam.
Esta futura mãe sabia perfeitamente bem, desde uma idade jovem, que esta constante e horrível pressão que ela sentia era uma pressão interna. Que não era culpa de mais ninguém. E então ela se odiava ainda mais. Suas expectativas de si mesmo eram de completa perfeição, e cada vez que ela ficava aquém da perfeição ela se enchia de um insuportável e mergulhante desespero que ameaçava estilhaçá-la como um espelho barato2. Estas altas expectativas se aplicavam a cada departamento da vida da futura mãe, particularmente aqueles departamentos que envolviam a aprovação ou reprovação de outros. Ela foi, portanto, na infância e na adolescência, vista como inteligente, atraente, popular, impressionante; ela era elogiada e aprovada. Colegas aparentavam invejar sua energia, ânimo, aparência, inteligência, disposição e infalível consideração pelas necessidades e sentimentos dos outros3; ela tinha poucos amigos próximos. Por toda sua adolescência, autoridades como professores, empregadores, líderes de tropa, pastores e conselheiros do Federal Student Aid comentavam que a jovem gestante ‘aparentava ter expectativas muito, muito altas de si mesma’, e enquanto esses comentários eram frequentemente endereçadas em um espírito de preocupação gentil ou repreensão, não havia como não discernir neles certo inequívoco tom de aprovação, - do julgamento imparcial e objetivo e decisão de aprovar – e de qualquer maneira a futura mãe sentia (por um momento) aprovada. E se sentia vista: seus padrões eram altos. Ela tomava certo orgulho abjeto em sua inclemência consigo mesma4
2) Os pais dela tinham sido de baixa-renda, fisicamente imperfeitos,  e não muito inteligentes – características que a criança  se detestava por perceber.
3) As expressões relaxa ou fica tranquilo não tinham àquela época se tornado correntes (assim como merda psicológica; nem abuso de pais ou até mesmo perspectiva objetiva)
4) De fato, uma explicação que os próprios pais da future mãe davam por discipliná-la tão pouco era que sua filha parecia se censurar tão impiedosamente por qualquer insuficiência ou transgressão que discipliná-la pareceria, citação, “um pouco como chutar um cachorro”.
Já pela época em que ela era crescida, seria acurado dizer que a futura mãe de fato estava tendo bastante dificuldades internas.
Quando ela se tornou uma mãe, as coisas ficaram ainda mais difíceis. As expectativas da mãe de sua pequena criança também eram, por fim, impossivelmente altas. E cada vez que a criança ficava aquém, sua inclinação natural era odiá-la. Em outras palavras, toda a vez que ela (a criança) ameaçava comprometer os altos padrões que eram tudo que a mãe sentia realmente ter, dentro, o auto-ódio instintivo da mãe tendia se projetar para fora e para baixo na direção da criança em si. Esta tendência se agravava pelo fato que existia apenas uma separação muito pequena e indistinta na mente da mãe entre sua própria identidade e a da pequena criança. A criança aparentava em certo senso ser o próprio reflexo da mãe em um espelho diminuidor e profundamente falho. Portanto toda vez que a criança era rude, gananciosa, abominável, estúpida, egoísta, cruel, desobediente, preguiçosa, tola, voluntariosa, ou infantil, a inclinação mais profunda e natural da mãe era odiá-la.
Mas ela não podia odiá-la. Nenhuma boa mãe pode odiar sua criança ou julgá-la ou abusá-la ou desejá-la nada de mal. A mãe sabia disso. E seus padrões para si própria como mãe eram, como era de se esperar, extremamente altos. E então toda vez que ela ‘escorregava’, ‘estourava’, ‘perdia sua paciência’ e expressava (ou até sentia) ódio (ainda que breve) pela criança, a mãe imediatamente mergulhava em tamanho abismo de auto-recriminação e desespero que ela sentia que simplesmente não poderia aguentar. Consequentemente a mãe estava em guerra. Suas expectativas estavam em conflito fundamental. Era um conflito em que ela sentiu que sua vida em si estava em jogo: um fracasso em superar sua insatisfação instintiva com sua criança resultaria em uma terrível, estilhaçante punição que ela sabia que seria ela que ministraria, dentro. Ela estava determinada – desesperada – em ser bem sucedida, em satisfazer suas expectativas de si como mãe, custe o que custar.
De uma perspectiva objetiva, a mãe era incrivelmente bem-sucedida em seus esforços de auto-controle. Em sua conduta externa para a criança, a mãe era infatigavelmente amável, compassiva, empática, paciente, calorosa, efusiva, incondicional, e desprovida de qualquer capacidade aparente de julgar ou reprovar ou recusar amor em qualquer forma. Quanto mais desprezível era a criança, mais amável a mãe exigia de si mesma ser. Sua conduta era, por qualquer padrão do que uma mãe extraordinária deveria manter, impecável.
Em troca, a pequena criança, enquanto crescia, amou a mãe mais do que todas outras coisas no mundo colocadas juntas. Se tivesse a capacidade de falar de si verdadeiramente de alguma maneira, a criança teria dito que se sentia ser muito uma criança perversa, detestável que por meio de alguma imerecida jogada de ótima sorte conseguiu ter a melhor, mais amável e paciente e linda mãe do mundo inteiro.
Dentro, enquanto a criança crescia, a mãe se enchia de auto-ódio e desprezo. Certamente, ela sentia, o fato que a criança mentia e trapaceava e aterrorizava os bichos de estimação da vizinhança era culpa da mãe; certamente a criança estava simplesmente expressando para todo o mundo ver suas próprias deficiências patéticas e grotescas como mãe. Então, quando a criança roubou o dinheiro da UNICEF que sua turma tinha recolhido ou segurado um gato pela cauda e golpeado ele repetidas vezes contra a quina da casa de tijolos do vizinho, ela tomou as deficiências grotescas da criança para si própria, recompensando as lágrimas e auto-recriminações da criança com um perdão de amor incondicional  que fez com que ela aparentasse para a criança ser seu único refúgio em um mundo de expectativas impossíveis e julgamentos impiedosos e infinita merda psíquica. E enquanto ele (a criança) cresceu, a mãe tomou tudo que era imperfeito nele bem fundo dentro de si e aguentou tudo e então o absolveu, redimindo-o e renovando-o, na mesma medida em que ela acrescentava ao seu próprio fundo de ódio.
E assim foi, por toda sua infância e adolescência, de tal maneira que, quando a criança era velha o bastante para se registrar para várias licenças e permissões, a mãe estava quase inteiramente cheia, profundamente, com ódio: ódio por si própria, pela criança infeliz e delinquente, por um mundo de expectativas impossíveis e julgamentos impiedosos. Ela não podia, claro, expressar nada disso. E então o filho – desesperado, como são todas as crianças, para retribuir o amor perfeito que só pode se esperar de mães – expressou isto tudo para ela.

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