domingo, 23 de fevereiro de 2014

A respeito do panorama sobre literatura contemporânea publicado pela Folha

Pouco tempo atrás eu teria lido com bastante interesse esta enquete feita pela Folha sobre literatura brasileira contemporânea. Para quem tá com preguiça, como eu, mas talvez queria um pouco não estar com preguiça, aqui vai um resumo que acabei de inventar (sem ter lido) que muito provavelmente se aplica ao que foi publicado:
1) Vai ter o velho que fala que na época em que ele não era velho era tudo bem melhor, nossa. Anos cinquenta, putz, Guimarães e Clarice publicando, era outra coisa - esquecendo completamente que não eram apenas Guimarães e a Clarice publicando, que as obras de valor são sempre minoria numérica; grande novidade: autores esquecidos são tão esquecidos que as pessoas esquecem que esqueceram.
2) Vai ter o não-tão velho que admira o velho (ou algum colega do velho) que realmente, putz, no outro dia eu li um romance e foi ruim, nunca mais, me deixa aqui com meu Graciliano (só a parte boa, por favor, não me venha com esses Caetés aí não)
3) O sujeito que diz que há grande diversidade no panorama atual... como se na literatura moderna isto não fosse característica de praticamente qualquer sistema intelectual minimamente saudável (não confundindo saudável com robusto, claro). Faulkner e Hemingway publicavam contemporâneos um ao outro, Kurt Vonnegut e John Barth, Raymond Carver e as primeiras obras de destaque do Cormac McCarthy... Este não está errado, mas saímos da leitura de sua opinião sabendo o mesmo que quando entramos.
4) O que gosta de tal assunto e reclama que as pessoas não escrevem sobre o assunto que ele gosta (cadê o ativismo, cadê a experimentação, cadê qualquer coisa), ou escrevem pouco sobre aquele assunto, ou escrevem mal sobre aquele assunto. Quando na verdade não é o assunto que tem pré-existência a ser posteriormente preenchida pelo autor, e sim o assunto que ganha formato específico (pautado pelo tratamento literário aplicado) quando escolhido pelo autor.(Até o velho romance-sobre-futebol que sempre "estava faltando" ao mesmo tempo encontra-e-não-encontra seu cumprimento no livro O Drible, do Sérgio Rodrigues, que é bem mais sobre ressentimento do que sobre futebol: quem diria que o "passatempo nacional" encontraria tamanha expressão literária em um dos textos mais negativos da nossa literatura?).

O problema estrutural desses panoramas é bem simples: o leitor de Literatura (este panda praticamente extinto) não mantém um relacionamento com nenhum panorama, e sim com obras específicas, quando muito com determinados autores. Gostar de um livro lançado em 1987 não quer dizer nada a respeito de outros livros de 1987. Talvez até seja possível encontrar algumas similaridades dependendo do espírito da época (claro que ignorando as obras que não se encaixam), mas a diferença de qualidade de uma tentativa em relação a outra sempre vai ser enorme, e sempre vai ser o principal. O interesse por panoramas é apenas de acadêmicos e especialistas: sei porque já tentei ser um, já li um monte desses a respeito do período que estudei no meu mestrado, são textos sempre infatigavelmente idênticos, inevitavelmente vagos e prolixos, uma listagem comentada de autores que poderia se resumir muito bem a apenas a listagem deixando para o leitor descobrir de quem ele gosta e quem ele vai ignorar. Não estou falando da qualidade específica do panorama publicado pela folha, só estou ressaltando que os textos desse gênero são bem menos úteis do que parecem. Existe sim um sistema literário (passei páginas demais da minha dissertação argumentando isto) que exerce sua influência na publicação e até mesmo na recepção das obras: mas se a obra de destaque ganha seu destaque justamente na atipicidade, para que tanto interesse em generalizações?

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Outro problema, claro, ao falar de literatura contemporânea é que a ausência (estruturalmente onipresente) de um cânone dificulta discussões mais afundo. Se falamos sobre Dom Casmurro, podemos entrar em mais detalhes pois imagina-se que boa parte da plateia (do mundo dos leitores de literatura, claro) tenha lido o livro. Se falamos sobre, sei lá, Rubens Figueiredo, a quantidade de detalhes que se pode adentrar sem alienar a parcela de não-leitores é bem menor. Posso falar com mais tranquilidade do enterro do Escobar narrado por Bentinho, mas não tanto das dez-ou-vinte páginas bizarras em que o narrador do Passageiro do Fim do Dia fica falando sobre um clone de GTA que um rapaz joga numa lanhouse.

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Lição do post:  não leia o contemporâneo para ter uma ideia do que está acontecendo. Para se aproximar minimamente disso será necessário ler uma quantidade irrazoável de obras, e necessariamente a maioria será bem ruim (já estive nesta onda, e até entrei nela no modo vintage quando fui ler a produção não-canonizada da literatura brasileira dos anos 70). De qualquer forma quem vai entender tudo bem melhor do que você conseguiria vai vir depois de tudo isto que está acontecendo, isto é, depois de você. Leia o contemporâneo se te parece que aquele livro específico pode ser uma boa leitura.

2 comentários:

  1. pô, você fala que O drible é um dos textos mais negativos da nossa literatura. pode desenvolver isso? não entendi mesmo, de verdade.
    e, puxa, você não gosta de Caetés? acho um romance interessante (umas 37 vezes mais q O drible, p. ex.).
    e os caras que gostam de estudar panorama são os que fazem história literária, né? meu melhor professor de literatura, o luís bueno, gosta disso, inclusive a tese dele foi sobre o romance de 30, e ele teve a paciência de ler toooodos os romances do período.
    gostei bastante do teu texto, até salvei aqui. vou espalhar a última frase (talvez o parágrafo inteiro) pelos corredores de Letras (com copyright, claro).

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    1. 1) O drible é negativo no sentido de ser ódio o sentimento que parece correr com mais longevidade nas veias dos personagens. Só ver o que é tematizado nas três epígrafes: racismo, inimizade, patricídio.

      2) Tem muito tempo que não leio Graciliano, não confio mais tanto nas minhas leituras de adolescência. Preciso revisitar

      3) Li parte do livrão do Luís Bueno, tá até citado na minha dissertação, é bem bom. Minha dissertação em grande parte foi também um esquema de história literária; a questão em jogo aqui é a besteira tentar desenvolver qualquer visão do todo quando você está ainda inserido nesse todo. Podemos talvez ler os livros que recebem alguma atenção e destaque no momento (como, por exemplo, o drible), mas a visão que o futuro terá de agora (não só a literária) não nos é acessível, não tem como ser adiantada.

      4) Valeu =)

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