A produção de literatura deve ser uma das
poucas atividades humanas que tem como primeiro público pessoas predispostas a
odiá-la.
Tenho o assunto desse texto ruminando na minha
cabeça há um tempo, e em um rascunho anterior eu suscitava como exemplo
praticamente todas as caixas de comentários do blog Todoprosa, do Sérgio
Rodrigues. Não se trata da desgraça comum das caixas de comentários da
internet, em que frequentemente se denuncia que o governo está arquitetando
a vinda de alienígenas pedófilos para roubar as armas do cidadão comum de forma que ele fique indefeso contra as invectivas da ditadura do politicamente correto, e
sim de uma desgraça light, uma desgraça semi-refinada, uma desgraça que força suspiros apaixonados ao ler poesia. A desgraça bem típica do leitor de fim de
semana, que lê duas ou três vezes mais do que o brasileiro comum (isso é, quase nada) e
ainda assim se veste sem constrangimento com roupa de entendedor profundo e
crítico incisivo, sendo que na verdade a satisfação de outra pessoa em ler sua opinião tende a ser
próxima da de acordar com dor de dente.
Nunca me esquecerei de um post em que o Sérgio
Rodrigues elogia o início do “Um Conto Nefando” do seu xará Sant’Anna, em que
uma mãe num clima de abuso perdoado tem relações sexuais com seu filho, referido
pelo texto como "poeta maldito". O comentário tecia uma crítica do tipo que a
caracterização do conto era meio clichê. O texto chama um personagem de Poeta
Maldito e o sujeito entende que é falta de criatividade do escritor, e não
qualquer vontade de trabalhar os arquétipos de maneira direta, semi-irônica.
Não se trata de tirar o direito das pessoas de
não gostarem de textos literários, ou até mesmo de ocasionalmente estarem
erradas ou de escrever besteira, e sim de discutir a prontidão e o prazer que
muitos leitores sentem na hora de desqualificar qualquer produção contemporânea,
ufanando-se sempre dos tempos gloriosos dos grandes escritores que nunca
voltarão.
No entanto, nas primeiras versões desse texto
tudo estava muito abstrato, parecendo aquelas soluções brilhantes para
problemas inventados, até que certo momento uma santa alma me fez o favor de
permitir que esse texto seja ilustrado com uma síntese perfeita:
São vários elementos constitutivos desse problema. O primeiro,
mais simples de apontar, é a mera seleção do tempo: temos de cada época antiga da
literatura apenas os melhores escritores e os melhores textos; os medianos,
medíocres e ruins tendem a ficar para os especialistas que buscam reconstruir
um período literário em suas dissertações e teses (deus me livre de ter de fazer isso de novo,
nunca mais, a vida é muito curta). A literatura nos 30 no Brasil pode parecer superior à atual, se lermos Graciliano após ter aturado um livro fraco publicado no ano passado,
mas é justamente por lermos o melhor da época e não as dezenas e centenas de livros do
período que foram justamente esquecidos.
Até prêmios literários, que fazem um pouco
desse serviço no meio contemporâneo, não nos ajudam certeiramente; todos conhecem a
velha história do Sagarana ter ficado em segundo lugar no concurso em que foi
inscrito, atrás de um livro que hoje ninguém lê, o próprio Graciliano figurando
na comissão julgadora. Todos os jurados que participam desses prêmios comentam a loucura que é ler uma fatia
significativa do que é lançado pelas editoras no período de um ano; e nem dá
pra cobrar dessa maratona massificada de um-livro-por-dia o discernimento
perfeito em uma arte que frequentemente valoriza a sutileza, o sub-entendido,
ou até mesmo o escondido. A literatura sempre foi e sempre será um jogo
demorado.
Já acreditei que essa era o único ou o
principal fator operante; no entanto, mais recentemente vejo que não é só isso. Acho que isso fica visível a partir dos dois casos citados aqui, o de Sérgio Sant’Anna, um dos mais premiados escritores da
atualidade e, a meu ver, a única obra de formação inicial nos anos 70 que
conseguiu sobreviver a bagunça de categorias significativas que foi a
redemocratização brasileira (um detalhamento maior disso tá lá na minha dissertação), criador de uma das obras mais sólidas de toda a
literatura brasileira, e o romance do Sérgio Rodrigues, que a senhora lá achou
“chato pra caramba” e que conta com trechos como esses:
“Entre o fim da infância e o auge da adolescência, meio orgulhoso e meio
horrorizado, Neto aprendeu pela imprensa a soletrar o rol das amantes de seu
pai, uma por uma: princesas europeias libertinas, starlets americanas
drogaditas, socialites de pescoço longo de Modigliani, filhinhas perdidas de
general e brigadeiro em idade ilegal dadas a vomitar às seis da manhã sob a
mesa do Hippopotamus, escritoras intoxicadas de Anaïs Nin e Shere Hite, atrizes
do Zé Celso imunes aos desconfortos da depilação, atrizes de pornochanchada e
de Tchékhov, capas de Ele Ela e Status, aspirantes às capas de Ele Ela e
Status, psicanalistas reichianas, cantoras bissexuais. Mesmo que metade daquilo
fosse lenda, era evidente que nunca tinham faltado a Murilo Filho, o filho da
puta, as graças de um grande elenco de habitantes fogosas daquele mundo
pré-aids. Era quase perdoável que não tivesse tempo para ser pai.”
(listagem de fazer descer uma lágrima de
orgulho no William Gass)
ou
“O Perna sempre passava do ponto na
birita, ficava chato, mas o pessoal entendia. O cara tinha uma perna mecânica
da qual não se podia falar, era tabu, o mesmo que perguntar hoje ao Roberto
Carlos da perna dele: todo mundo sabia e ninguém comentava, mas aí é que está.
Apesar disso, todos chamavam o Perna de Perna. Era o apelido dele desde a época
do Tiro de Guerra, quando ele ainda tinha as duas pernas e começaram uma
brincadeira no vestiário dizendo que ele era aquinhoado de uma terceira entre
as duas de um ser humano normal. No início o chamavam de Terceira Perna, mas
Terceira Perna era um apelido inviável, comprido demais, ficou Perna. (...) O
Perna gostou daquilo de dizerem que era bem-dotado. As mulheres perguntavam por
que Perna e os homens se entreolhavam, desconversando. Algumas donas era
inevitável que botassem malícia, imaginassem o resto, mas o Perna achava isso
melhor ainda, tudo propaganda. Quando anos depois perdeu a perna na serralheria
do pai, era tarde para voltarem a chamá-lo de Reginaldo, e começou a comédia: o
nome que o protegia era o mesmo que o atacava. A cidade entrou em curto-circuito,
acabaram por prevalecer tanto o apelido quanto o tabu. Todo mundo chamava o
Perna de Perna, mas ninguém falava do aleijão do Perna na frente dele, coisa
horrível, mesmo porque diziam que tinha afetado de algum modo sinistro a tal
ex-terceira perna, que agora seria no máximo a segunda mas talvez nem isso, ai,
meu Deus.”
Cheio de sexo, violência, ressentimento,
denúncia de racismo e machismo e um entendimento histórico sutil a respeito da
realidade brasileira, é até possível imaginar que alguém talvez questione como
se compõe esse entendimento histórico e essas denúncias, um excesso aqui ou ali na busca pela síntese, ou mesmo do romance se propor a fazer essa síntese; falar que o livro é
chato, no entanto, é apenas bizarro. Até quem odeia futebol tem grande chance
de gostar muito do livro; vê-se um cuidado apurado com cada página e um
interesse vívido de manter o interesse do leitor até mesmo de attention-span curtinho, internético.
Já postei anteriormente sobre a diferença de
ler um livro contemporâneo e ler um clássico. Ítalo Calvino famosamente diz com
sorrisinho de canto de boca que o clássico é o livro que sempre se diz estar relendo:
há um pressuposto de dívida sendo saldada quando um leitor vai pela primeira
vez às páginas de um clássico, a frase “estou lendo X pela primeira vez”
carregando quase sempre o advérbio implícito de “finalmente”. Imagina-se também
uma doação altruísta de seu tempo livre para manter acesa a morredoura chama da
civilização, tão ameaçada hoje em dia por reality shows e mídias sociais (sem que a pessoa em suas leituras vá alcançar a percepção de que a chama da
civilização sempre esteve sob ameaça, ou que o que se chama de civilização às
vezes é apenas o incêndio que se põe naquilo que está no caminho das vontades
dos poderosos).
Com o contemporâneo, por sua vez, a doação não
é feita ao Espírito do Ocidente, e sim à pessoa física do autor, que bem que
poderia depois mandar um email de agradecimento pela magnanimidade do leitor ao
escolher seu texto em vez do de um consagrado. Nessas leituras de saldar
dívidas, qualquer defeito em um clássico é rapidamente relevado e posto de
lado: se Dickens é prolixo, isso se dá pela conjuntura comercial da produção
literária de sua época, de pagarem por palavra; se Robinson Crusoé é
terrivelmente imperialista, é apenas a normalidade do pensamento vigente do
período; se Joyce é obscuro é por ser profundo demais (metido? nunca!),
cabendo ao leitor apenas correr atrás.
Qualquer defeito em um contemporâneo é motivo
para amargurar profundamente não estar gastando seu parco tempo de leitura (e é
verdade que uma vida inteira para leitura parece muito pouco) com algo
consagrado. O poder simbólico na relação escritor-leitor na visão dessa pessoa se estrutura
de forma muito simples, o mais poderoso e o menos poderoso: o autor canônico
mais poderoso que o leitor contemporâneo, o leitor contemporâneo mais poderoso
que o autor contemporâneo. Nunca se busca (talvez sequer se imagina como
possível) uma relação mais de equanimidade, de diálogo.
Se fosse só uma questão de como os defeitos
são absorvidos pelo leitor, o problema não seria tão espinhoso. A triste
verdade é que não é nada unânime o que constitui defeito em uma
obra literária, e o leitor que já abre o livro de nariz torcido, predisposto a
sentir o cheiro de merda antes mesmo de chegar nas primeiras palavras do livro,
vai tomar por defeito tudo que pode ser tomado de tal forma. A um autor de livro curto falta fôlego, a um autor de livro
longo falta auto-crítica e um editor competente que tenha sugerido cortes, a um
autor de narrativa convencional falta criatividade/ousadia/originalidade e a um
modernoso sobra pretensão. Claro que é possível que existam livros magros
demais, longos demais, convencionais demais, ou com um excesso de invencionices
ilegítimas; existe, no entanto, uma rapidez no julgamento negativo, ou mais que
isso, uma vontade de exercer o julgamento negativo (que, claro, deusmelivre,
nunca poderia ser exercido em um livro consagrado; se você demorou para
terminar de ler aquele clássico é sempre culpa sua).
O protagonista de um comentário elogioso é o
objeto elogiado, já o protagonista do comentário crítico é o comentarista.
Elogiar o amplamente elogiado é uma pequena forma de fazer com que o
protagonista do comentário elogioso seja em parte do comentarista. Nossa, olha
fulano, ele lê Tolstoi. Já em falar mal do consagrado há o risco imenso é de
ser o protagonista idiota ou pouco sagaz, por mais que possivelmente se fale
uma verdade, como por exemplo do Dostoievski que de fato escrevia os romances de
forma desorganizada; é possível valorar a tal desorganização, mas bem mais
passível de vermos a característica sendo valorada no Dostoievski do que em
algum contemporâneo similarmente verborrágico.
(Há também, como em tudo, o risco contrário,
do fulano querer um atalho para ser considerado iconoclasta e original jogando
pedra no cânone por critérios apressados)
Não há de se falar de uma luta para que esses
jogos de ego sejam superados; se isso realmente acontecer algum dia na
humanidade, uma literatura mais livre de opiniões estúpidas constará entre os
benefícios menores dessa revolução impossível. Cabe apenas expor os exageros
que às vezes são norma, e tentar construir uma consciência de que esse é um
risco constante. Não é apenas o louco da caixa de comentários que coloca as
coisas dessa forma, e às vezes não é tão transparentemente estúpido: às vezes
traz frases mais ou menos bem construídas, COM MENOS MAIÚSCULAS, e que até
conseguem enganar mais do que os cegos.
Exemplo rápido: http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2015/10/07/porque-o-brasil-nao-ganha-o-premio-nobel-de-literatura/
Olha como é fácil ser superior a todos os escritores
brasileiros contemporâneos de uma só vez, dá até pra reciclar texto de vários
anos atrás (e de novo, daqui a pouco, quando o Brasil (ó mágoa) não ganhar de
novo o Nobel). O problema é muito simples: esses escritores brasileiros que só falam
de seus mundinhos... como se Coetzee não falasse da África do sul e de ser um
homem branco, Alice Munro de ser mulher no Canada, Herta Muller do
autoritarismo que ela mesmo viveu, Vargas Llosa de ter de aturar ser
latino-americano, etc etc.
Há sempre o ressentimento do holofote, por
menor que seja o holofote, um luzinha em círculo de poucos centímetros de raio
(um sucesso editorial no Brasil não precisa chegar a cinco dígitos de
vendagem). Qualquer um que sobe no palco para qualquer apresentação precisa
sempre responder a pergunta “por que você é o que sobe no palco”, quase sempre
sendo omitida o resto da pergunta “... e não eu?”. Qualquer pianista de
carreira ascendente rapidamente fica sabendo de comentários atravessados de
outros pianistas não tão prósperos, ou destinados (assim se dizem todos os dias
no espelho) apenas à consagração póstuma.
Creio que na literatura esse problema tem amplitude maior, uma vez que todo leitor é alfabetizado, todo leitor tem seu histórico de leitura e todo leitor reconhece uma história boa de se contar ou ouvir: todo leitor tem em mãos os recursos para se considerar um pianista, restando a ele reclamar de quem está sob ou quem controla os holofotes, até mesmo se ele não tiver composto porra nenhuma.
Creio que na literatura esse problema tem amplitude maior, uma vez que todo leitor é alfabetizado, todo leitor tem seu histórico de leitura e todo leitor reconhece uma história boa de se contar ou ouvir: todo leitor tem em mãos os recursos para se considerar um pianista, restando a ele reclamar de quem está sob ou quem controla os holofotes, até mesmo se ele não tiver composto porra nenhuma.
A paz do escritor genial que nada escreve
reside quase exclusivamente no cânone e na legitimidade automática que tem o
passado: eu seria um grande escritor, com certeza, mas o tempo de grandes obras
literárias passou. As pessoas hoje só querem saber de Big Brother ou facebook,
putz, a chama da civilização nunca esteve tão fraca. Não há mais condições: não é mais possível ser
grande, por isso nem vale a pena arriscar, desavisados são os que vão atrás, ou
nem dá pra dizer que vão atrás porque sempre estão e estarão aquém, eu que não
faço nada que sou esperto, bem melhor do que esses que ficam tomando o tempo
dos outros e se achando por aí, blábláblá.
Não é um mal de agora, claro, achar que o
tempo das grandes obras sempre passou: até em Homero existe sub-entendido um
período de grandeza humana inteiramente inacessível à imundície contemporânea.
Aquiles é mais forte que qualquer um hoje (de hoje mesmo ou ouvindo algum aedo) poderia
ser, Ulisses mais arguto, Helena mais bela e Menelau mais corno (talvez esse
último seja verdade, até mesmo antes de existir a escrita já se discutia pelos
séculos os chifres do coitado). Igualmente, Drummond é mais sensível, Vinícius
mais apaixonado e apaixonante, Cabral mais criterioso, Oswald mais louco
(esse precursor do nude metido à besta, entre outras inovações).
Esse sentimento se reforça no fato de o
passado vir a nós bem mais embalado para um entendimento razoável do que o
presente, essa bagunça contínua e convulsiva. Em um mundo mais organizado, é
realmente mais fácil ver o que constitui o fraco e o genial. Ou talvez seja a
influência da infância e dos primeiros anos de leitura na vida da pessoa que
não amadurecem depois para algo que caiba ainda a descoberta e a satisfação
fora do mundo da nostalgia; é verdade que livros nascem de livros tanto quanto
(ou até mais do que) de reflexão e experiências de vida, e os que chegam
primeiro produzem sombra grande sobre os que acessamos depois, mas é um leitor
acomodado o que parte de forma exclusiva e acrítica da sua experiência pessoal
(e da consagração já pré-pronta) para valorar em voz alta, oficialmente, a
produção atual. É o crítico gastronômico que em toda resenha diz que tudo é
ruim porque nada é melhor do que a comida da mãe: nada de errado de pensar isso
(apenas triste depois da mãe morrer), errado é o cara partir daí pra virar ou
se fazer de crítico gastronômico.
Há, ainda, aqui, um espacinho também para o
bom e velho complexo de inferioridade brasileiro. Se podemos ser bondosos e
magnânimos com a capacidade humana de criar obras grandiosas, ter fé no futuro
da chama da civilização, querendo nos manter na posição de críticos ferrenhos
de tudo que está aí sem ter de contribuir de fato qualquer coisa para a
discussão, podemos nos agarrar na velha lamúria de existirmos sob condições tão
medíocres. Daí é possível permitir a entrada de um Foster Wallace, Philip Roth,
Saramago ou o que valha, tendo sonhos de como seria possível talvez assinar uma
obra-prima se você não tivesse de enfrentar filas de cartório, procurar algum
seguro-saúde que caiba no seu orçamento ou lidar com vizinhos chatos e
mal-educados que certamente não existiriam acima da linha do Equador.
(a história do ó-nunca-ganhamos-um-Oscar e
ó-nunca-ganhamos-um-nobel dá outro texto)
É verdade que Tolstoi realmente é muito foda,
e que está no direito da pessoa optar por gastar seu tempo principalmente ou
exclusivamente com os clássicos (talvez uma decisão melhor se o interesse for
de ler apenas livros bons); a dissonância se dá na convivência desses dois
mundos na verdade distintos, o contemporâneo e o consagrado, e nada
parece impedir que apareçam caga-regras cheios de razão e discernimento sem ter
feito qualquer esforço para alcançar a posição de críticos de altíssima
capacidade analítica. Fique aqui pelo menos uma tentativa de registro contra isso, já que esse ódio automatizado realmente não serve de nada.
Acho que finalmente vou conseguir escrever a crônica que jaz no meu subconsciente: " Por que nunca consegui ler o ULISSES de James Joyce..."
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