(spoilers,
inevitavelmente)
Vale
dizer em primeiro lugar (me repetindo de outros posts) que eu nunca acreditei
naquela história de que estava faltando na literatura brasileira o Grande
Romance sobre o Futebol. Onde estaria o grande romance francês sobre o
ciclismo, o grande romance australiano sobre o rugby, o grande romance russo
sobre o hockey (logo eles que deram tanta importância ao esporte durante a
guerra fria), ou o grande romance americano sobre o baseball?
(Curiosamente,
existe um livro chamado The Great American novel, do Philip Roth, que é
justamente sobre baseball, mas ninguém o coloca entre suas melhores obras.
Alexandre Soares Silva fez o lembrete uns tempos atrás que o Delillo também tem
um romance sobre esporte, End zone, mas igualmente é um livro praticamente
esquecido )
Por
que seria a literatura brasileira, tão mais fraquinha do que a russa, a americana,
ou a francesa a primeira a preencher essa lacuna sobre grande narrativa sobre
esporte? Sequer existem tantos filmes de esportes que tenham grande apelo para
além dos entusiastas daquela atividade; creio que a única exceção seja o boxe
(Rocky, Million Dollar baby, etc), que conta com sua brutalidade inerente como
grande vantagem para seu lado: nada como um pouco de violência para colocar um
pouco de sentido e emoção nas coisas.
Argumenta-se
que no nosso caso o futebol não é apenas o esporte favorito do país, que a
relação do Brasil com ele é mais profunda do que a de outros países, que
estrangeiros ficam chocados pela forma como é da expectativa de todos que não
exista expediente de nada não-emergencial durante as partidas da seleção, e que
essa profundidade maior seria o suficiente para propiciar a produção dessa
narrativa Que Desse Conta da Experiência Nacional.
Um
dos problemas estruturais na questão é o tanto que o esporte constrói por si só
sua narrativa completa e perfeita, com protagonista e antagonista (invertendo
de acordo com o time escolhido), disputas, momentos dramáticos, vitórias e
derrotas quase sempre inequívocas, enquanto na literatura moderna é a
equivocidade ou a incerteza que frequentemente fundamenta o poder estético. O
motor principal da produção de sentido no esporte tende a ser não a confluência
de fatores complexos como acontece em um bom romance, e sim a demonstração de
poderio físico (seja força, agilidade, o que seja), ou união perfeita de muitos
indivíduos em coreografia perfeita, improvisada. O próprio Sérgio Rodrigues
comenta isso em um post de seu blog: que romance se safaria do sentimentalismo barato
de um Pelé moleque ao ver as lágrimas do pai com a derrota brasileira de 1950
prometendo que ganharia a copa para o país e indo lá oito anos depois e
ganhando? Coisa de email motivacional que tias mandam pra todo mundo sem saber
que só serve pra deixar mais deprimido quem tá precisando.
Minha
aposta, portanto, era de que esse romance nunca viria a existir. Talvez fosse uma
aposta ranzinza, já que eu nem sou tão fã de futebol assim (acompanho
esporadicamente as partidas dos times nacionais, pois como resistir o jogo
imaginário de nações inteiras brigando entre si), e também gosto de ser meio do
contra, falando que a literatura não funciona por preenchimento de lacunas
pré-imaginadas, que nenhum bom romance é realmente sobre uma coisa só. Eu
estava errado, ou pelo menos parcialmente errado, pois é sem dúvida nenhum
disparate dizer que o romance do Sérgio Rodrigues é o grande romance brasileiro
sobre o futebol. Não li todos, ou até arriscaria a estimativa que não li
nenhuma obra ficcional que fale mesmo de futebol que não os ocasionais textos
do Sérgio Sant’Anna que abordam o esporte, mas quem sabe não é uma aposta
desvairada dizer algo que pudesse minimamente competir com esse romance teria
recebido algum destaque nessa comunidade de leitores ansiosa para poder
preencher esse vazio tão claramente definido.
Mas
eu acho que O Drible é bem mais do que isso, e é exatamente com essa motivação
que fui reler o livro e escrevo agora esse post.
Pra
quem não sabe, meu mestrado (foi mal) acabou por tratar a literatura brasileira
numa abordagem meio megalomaníaca, que tomava o Formação, do Cândido, falando
de Arcadismo e Romantismo, emendando com o Literatura como Missão, do Sevcenko
(deusotenha), pra falar da virada do século (realismo e “pré-modernismo”) e o
Lafetá e Bueno e outros textos soltos pra falar do Modernismo, para construir
um panorama da literatura brasileira desde seu início, pegando a questão do
“empenho” colocada pelo Cândido como central. É uma dissertação longa, e o
resumo apressado dela é também longo [link: http://etudeslusophonesparis4.blogspot.com.br/2014/06/auge-e-derrocada-do-empenho-literario.html
], mas o resumo do resumo do negócio é: se tende a ser normal o escritor falar
sobre seu mundo circundante, e no mundo circundante meio porcaria que é o
Brasil (pelos milhares de problemas que sempre tivemos em nos organizarmos com um
mínimo de competência ao tentar constituir uma sociedade decente, cidadã) o
escritor brasileiro de várias épocas diferentes se viu repetidas vezes no papel
de denunciador de mazelas e intérprete completo da realidade nacional.
O
objeto da dissertação era a literatura do período da ditadura militar, e eu
defendo que em nenhum outro momento a questão do engajamento do intelectual foi
tão forte. Se antes era possível uma discussão demorada e meio inútil a
respeito de qual seria o problema mais urgente do país, depois da queda de
Goulart e o estabelecimento de um regime violento e autoritário e radicalmente
ilegítimo foi rapidamente estabelecido um consenso que abarcava quase todos os
intelectuais: a ditadura precisava acabar se o país era para sair desse buraco
eterno.
(já
já chego no drible)
Acabou
a ditadura, e o país parecia mais afundado do que nunca no buraco. As decepções
em sequência da redemocratização (nas palavras do romance, “...desilusão que
logo ia se revelar a fibra mais resistente do tecido democrático”) tiravam o
brio de qualquer crítico acostumado a ter como oposição a opressão desabrida, a
vilania declarada de um governo absurdamente imposto (e não a vilania democraticamente
legitimada). O intelectual estava acostumado a tacar pedra (geralmente em voz
baixa, por medo de aparecer depois só na lista de sumidos) se viu obrigado a
tecer críticas mais complexas do que “torturar é errado” e “democracia é o
caminho”, e, claro, talvez mais que tudo, lidar com o desgosto cotidiano que é
viver sob os frutos eleitorais da tal democracia de um eleitorado
monstruosamente desinformado.
Não
havia como essa decepção não ser sentida no campo literário. Os
romances-denúncia (dos estúpidos aos brilhantes) não tinham mais seu assunto
principal, de pertinência garantida, e mesmo em meio a tantas obras intelectuais
contrárias à ditadura o fim do autoritarismo, a passagem de poder ao mundo
civil, se deu de maneira tão distante quanto a transferência de chapéu de
maioral entre generais, ignorando os anseios demoradamente destilados pelos
intelectuais durante as décadas de semi-mordaça. O poder de volta com os civis,
continuaria a desigualdade e a miséria que a princípio dependiam encarniçadamente
da ausência da democracia para se manter: se o sistema prejudica a maioria,
como que a maioria tendo alguma voz institucionalizada, pelo voto, optaria por
manter o sistema? Pensar tanto tempo a respeito do país quando as decisões
todas são tomadas partindo principalmente na disputa de interesses e não de
interpretações? Qual contribuição um refinado intérprete nacional pode trazer
para uma partilha de propina? O que Eduardo Cunha vai querer saber de Iracema
versus Macunaíma, tirando talvez a disponibilidade dos respectivos domínios de
internet?
Os
romances brasileiros das últimas décadas, em sua maioria, abandonaram o tema
nacional. Abordam, inevitavelmente, a experiência de existir no Brasil, como
qualquer obra literária vai fazer (até mesmo uma obra passada em Marte há de
ser lida levando em consideração a origem do autor), mas não há mais a ambição
de tratar do país. Obras contemporâneas engajadas, como Habitante Irreal, de
Paulo Scott, tendem a selecionar questões específicas em vez de se pretender
qualquer como entendimento (e “solução”) universal, capaz de dar conta do todo
brasileiro. Não coloco isso como necessariamente um defeito, não acho que o
romancista brasileiro necessariamente perde ao tirar Raízes do Brasil do seu
top 5 de textos balizadores de sua produção para colocar, sei lá, Beckett ou
Barthelme ou o que valha. No final da última página o que vale é a qualidade da
construção do texto e do entendimento de mundo, seja orientado com fronteiras
geopolíticas/culturais em mente ou não.
O
Drible é exceção (aeee, chegou, com atraso mas chegou). O Drible é um romance
nacional, no sentido de ter a Nação como uma de suas questões principais, sem nem
descambar para o constrangimento de comparar a paixão pelo esporte no Brasil
com a existente em outros países. Toma o país para discussão com uma mistura
incrível de fascínio e desprezo, interpreta várias décadas da nossa história
com contundência surpreendente em um número até magro de páginas. Um romance de
amplitude condensada, uma concisão forte e natural, sem o quê maníaco dos
minimalistas. E, ponto importante, é um canto conscientemente composto para
garganta rouca, salvando-se da armadilha da nostalgia: o romance nacional
impressionantemente ressuscitado pelo cientista que desafia a natureza, maluco
porém ciente que sua criatura só vive enquanto durar a tempestade por ele
conjurada.
Não
coloco isso aqui como grande achado interpretativo meu; qualquer leitor que não
tenha pulado por algum exercício bizarro várias páginas do livro vai se deparar
com as várias cenas de Murilo Filho descrevendo sua interpretação sobre o país,
a forma como a transmissão radiofônica do esporte conseguiu construir uma união
no país por meio do time em disputa, a importância da limitação da mídia para o
narrador em fala rápida suprisse com superlativos qualquer realidade
manquejante que presenciasse naquele momento:
“Logo
discorria sobre o papel desempenhado pela conjugação de futebol com rádio na
história do Brasil, tal mágica tendo consistido, segundo sua teoria, na
fabricação das toneladas de argamassa necessárias para colar os cacos de um
país gigantesco que até aquele momento não era bem um país, mas uma vastidão de
terra dividida entre uns poucos proprietários que se distinguiam em partes
iguais pela ganância e pela indiferença às condições de vida das multidões que
trabalhavam para eles, pouco lhes importando que estudassem ou deixassem de
estudar, que tivessem casas com redes de esgoto ou cagassem no mato, que
vivessem ou morressem – no caso dos pretos, que teimavam em se reproduzir feito
ratos no esgoto, os donos da terra achavam melhor que morressem mesmo, o que
certamente fariam se tivessem um mínimo de autorrespeito. (p. 59)
(...)
a dívida do nosso futebol é pelo menos tão grande com o gongorismo dos
narradores também. (...) Sem a nossa vocação doentia para a metáfora
bombástica, o papo furado, o causo inverossímil, a gente não teria chegado tão
longe. Mais de noventa por cento do público só tinha acesso ao futebol pelo
rádio, e no rádio qualquer pelada chinfrim disputada em câmera lenta por
perebas com barriga d’água ficava cheia de som e fúria. A cada cinco minutos os
narradores faziam um Zé-mané qualquer aprontar feito de deus do Olimpo. Claro
que esse descompasso entre palavras e coisas era inviável a longo prazo, não
tinha como se sustentar. E como obrigar a narração radiofônica a ficar sóbria
estava fora de questão, restava reformar a realidade. Foi assim que o futebol
brasileiro virou o que é: em grande parte por causa do esforço sobre-humano que
os jogadores tiveram que fazer para ficar à altura das mentiras que os
radialistas contavam”(p.61)
“a
diferença entre vitória e derrota sempre teve muito de fortuito no futebol,
isso explica as crendices no oculto (...) a medida de caos que nunca deixa de
reinar em campo mesmo quando os times são talentosos e organizados (...) só que
era tudo besteira, ou se não besteira, vá lá, mitologia, linguagem. Como um
radialista chamando de proeza um lance banal: linguagem pura. O sobrenatural
era um véu que o pessoal aplicava sobre a realidade, não a própria realidade”
(p. 166)
Não
haveria aí a possibilidade de construir uma ponte entre a partida de futebol e
a realidade brasileira, e o radialista com o intérprete? Ou não será o próprio
Murilo Filho filhote desgarrado de Sérgio Buarque de Hollanda e outros colegas
de trabalho? Na verve típica da literatura moderna, de valorizar a ambiguidade,
e de escapar da pecha de romance-tese, em que todo o drama e personagens
narrados viram roupagens pouco-convincentes para disfarçar uma Ideia Principal,
a própria noção de ser possível “resolver” o país é ridicularizada pelo
protagonista, o Murilo Neto:
“Acho
que no fundo Murilo não se conforma de morrer sem ter entendido alguma coisa
profunda sobre o Brasil, uma maluquice assim (...) Não entende ou não quer
entender que já era, estilhaçou tudo, fodeu tudo. Não tem mais Brasil, se é que
um dia teve. Não tem um país só.” (146)
Os
contrastes entre os dois personagens são totais, não apenas nas opiniões, no
interesse pelo futebol ou na disposição anímica em geral (enérgica no caso do
pai, neurótica no caso do filho): se o pai valoriza a questão auditiva dos
rádios, a maioria das referências do filho (reiteradas ad nauseam pela
narrativa, parecendo quase impossível que algum minuto da cabeça do personagem
não passe por algum objeto protegido por copyright) são de natureza audiovisual,
do qual não há tanto refúgio de imaginação; se o pai se pretende escritor até o
fim e ocasionalmente colore seu discurso com citações literárias, o filho é
revisor de livro de auto-ajuda traduzido com control+v do Google. Até mesmo o
comportamento sexualmente predatório dos dois se dá de maneira distinta,
pautado pelo orgulho no caso do pai, em coleções públicas que parecem não ter
fim, e vergonha, de prováveis apagamentos de números da agenda do celular, no
caso do filho.
O
próprio romance desenha essa substituição de visões de mundo, ou até mesmo de
mundos, no capítulo em que discute a diferença entre o revival e a história, a
Cultura De Verdade e o Pop, que seria o ponto fraco estético do livro (pelo
excesso do modo explicativo) se as ideias ali fossem batidas ou minimamente conclusivas.
A provocação não é pequena. Existe a constatação de que de fato foi destruída a
visão histórica e de Grandes Interpretações da realidade, por ser insustentável
qualquer construção retórica diante de tanta realidade circundante, o inchaço
urbano em que a violência monstruosa é normalizada, a hipocrisias expostas em
menos de vinte e quatro horas e que mesmo assim perduram, o fato de ser cada
vez mais patente a impossibilidade de se sonhar com um mundo que não seja
apenas ligeiramente melhor (e que mesmo assim melhore esse muito pouco a muito
custo); por outro lado, o que veio para substituir esse otimismo infundado ou
insustentável dos Projetos Nacionais tampouco satisfaz em qualquer critério que
não o de distração imediatista. Decide-se que uma postura é insatisfatória
utilizando certos critérios (a ineficácia, ou pelo menos a ineficiência) e a
nova postura está menos apta ainda a lidar com o mundo se mantivermos os
critérios que utilizamos ao descartarmos a anterior. Descarta-se a postura e,
juntamente, os critérios que operaram o descarte. E o que resta?
O
livro narra essa sucessão de posturas em ambiguidade esgarçada: é inegável o
tanto de farsa que há na figura de Murilo Filho, capaz de opiniões como “poucos
proprietários que se distinguiam em partes iguais pela ganância e pela
indiferença às condições de vida das multidões” sendo ao mesmo tempo sendo
colaboracionista da ditadura (no mínimo pela edição estatal de livros seus), e que,
por tanto acúmulo histórico brasileiro de textos e discussões acaloradas e às
vezes até sofisticadas, pouco parece ter sido feito para melhorar de fato a
situação do país, qual seja o lado que se queira ver uma sociedade ideal (mais
“livre” ou mais “igualitária”). Parece que tudo é mesmo uma merda.
No
entanto, vemos junto com a reconstituição de diferentes épocas históricas do
Brasil (dos anos 50 do interior do país, aos movimentados anos 60 e 70 do Rio
de Janeiro, aos desencantos da redemocratização e os aparentes escombros de
civilização atuais) a reconstituição também dos estilos literários que
carregaram diversas épocas do país: temos crônicas esportivas, ironias
machadianas entre outras mais brutas, brutalismos de Rubem Fonseca, folclores
pitorescos à la Jorge Amado, algum pouco de regionalismo pacato de narrativa
interiorana, letras de sucessos radiofônicos anos 80 dos primórdios do Pop
brasileiro, até mesmo pedaço de soneto Belle Epocque e uma bizarra mulher que
fala que nem o sobrinho do Iauaretê. Há um carinho inegável subjacente na
riqueza de formas brasileiras no livro, em contraste imenso com o conteúdo que
destila denúncias de violência, estupidez e preconceito por todos os cantos,
como que em resposta esteticamente formulada à pergunta “mas por que afinal
você ainda atura morar aqui”: “ah, não sei, um jeito diferente nas pessoas, não
sei explicar direto”.
São
várias as outras sacadas geniais do livro: o fato de uma narrativa ter como
Figura Paterna Opressora um personagem de sobrenome Filho (e o filho oprimido
na verdade ser Neto), com pouquíssimas referências a quem seria o patriarca
original, mostrando que a imensidão da sombra paterna é algo superável, apenas
não superado por Neto, tornando apenas mais terrível seu tormento. O fato da
trama inteira de vingança se ordenar perfeitamente pelas lacunas sentimentais
do filho, que compra os croquetes na previsibilidade de quem busca a
estabilidade de uma rotina (em sua mente dando a grandiosa descrição de
“ritual”), e de suas idas à casa do pai continuarem apesar de não dar qualquer
aparência de resolução emocional vindoura, como o ressentido que revisita suas
mágoas apenas para avivá-las, feito viciado que sabe que faz errado, só para um
revival. O delineamento detalhado de um machismo venenoso disseminado como
normalidade, acessível e operável tanto por Fodões quanto por Fodidos.
Até
mesmo o que eu tinha achado que era defeito, certo excesso de foreshadowing do
livro, tornando o suposto final surpresa um pouco previsível, na releitura se
mostra fascinante: praticamente a cada quarenta páginas se vê um aviso de que
as coisas não são como o protagonista as entende, o médico falando que Neto não
se parece com o pai, sendo anunciado que o livro favorito é Dom Casmurro... a
coisa primeiro parece quase livro de detetive que subestima a inteligência do
leitor. Só que na segunda viagem percebe-se que os avisos não são a cada
quarenta páginas, e sim a cada vinte, e não estão ali a serviço da perspicácia
do leitor, e sim para evidenciar de novo e de novo a cegueira monstruosa de
Neto, incapaz de enxergar o que é colocado de novo e de novo diante de si. O
contraste que se impõe fortemente é a de seu pai biológico, que tinha o dom de
ver um segundo adiante, e seu filho sem talento para o futebol e, mais para
frente, para a vida como um todo. O que era tão promissor se torna frustrado
para além das expectativas anteriormente delineadas, quebrado de uma forma
antes inimaginável.
Foi
esse, principalmente, o segredo de Rodrigues para conseguir abordar a questão
nacional pelo futebol, não só fugindo como destruindo a armadilha do deslumbre;
tratar o que É na sombra permanente e deprimente de O Que Poderia Ter Sido, que
qualquer coisa de valor e relevância que apareça nesse país precisa vencer uma
luta inglória para continuar existindo ou não ser cooptada e desvirtuada. Que a
adolescência moral e intelectual perpétua do Brasil explicita a perda da
inocência da infância e a frustração repetida de estar sempre aquém de um
desenvolvimento e amadurecimento que nunca chega, e o abandono das expectativas
de um país significativamente melhor não produz o apagamento das frustrações.
Não vamos deixar de amargurar todas a canalhices de nosso mundo se aceitarmos
elas como naturais; elas só vão deixar de melhorar na lentidão enlouquecedora
como vem melhorando.
Pois
elas podem começar a piorar. Como Neto percebe ao final de sua história, e como
pudemos presenciar entre o setembro de 2013 da publicação do livro e esse 2015
que parece que não acaba, as coisas sempre podem piorar.
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