quinta-feira, 12 de maio de 2016

Fogo Pálido e o substrato biográfico

No espírito daquele registro de diário do Kafka em que escreve algo do tipo "hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. Aula de natação hoje à tarde", um post semi-breve:

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(Não acho que seja spoiler de Fogo Pálido, mas de qualquer maneira o livro não opera muito nesse registro de enredo)
Conhecendo um pouco da vida do autor é impossível ler a última cena de Fogo Pálido sem pensar na velha questão das relações de transposição entre vida e arte. Afinal, narra-se lá um assassinato desastrado em que a vítima acaba atingida por engano (acreditemos ou não na história de Zembla e Jakob Gradus, ou em vez disso enxerguemos tudo como disfarce do pobre Botkin, encontrando embaixo da máscara do assassino um tal de Jack Grey), e um dos fatos mais marcantes da vida do Nabokov decerto foi a morte do pai, em circunstâncias no mínimo parecidas, em Berlim, nas agitações políticas após a 1ª guerra.

A sombra do real paira por cima do ficcional, e é a tentação de muitos, em especial leitores menos experientes e jornalistas, achar que nesse semi-segredo biográfico (“ei, você sabia que o pai do Nabokov...”) encontramos a chave do entendimento máximo e final da obra, que o aparato textual todo seria primeiramente uma forma do autor lidar com os sentimentos enterrados por quarenta anos, a morte de John Shade sendo na verdade a morte de Nabokov Pai sob um disfarce colocado como que por educação do autor.

Talvez aí seja em parte o motivo do sucesso da onda de autoficção (que ainda não deu vez pra onda seguinte): queima-se essa etapa intermediária, aproveitando-se todas as técnicas herdadas do trabalho literário, ordenação narrativa, construção de cena, etc etc sem o inconveniente do ficcional lá para atrapalhar nossa consciência, insistindo que é possível que estejamos desperdiçando nosso tempo com algo puramente inventado. Um livro ruim sobre um assunto real, afinal, vale mais do que um livro ruim de ficção: atravessando frases desconjuntadas, argumentos fracos ou o que for, é improvável que se saia da experiência não tendo aprendido nada (nem que seja uma nova forma de estar errado).

No entanto, uma leitura menos viciada em encontrar soluções definitivas pode desconfiar do fato de que em Fogo Pálido muito pouco luto é exercido pela morte de John Shade, seja pelo seu narrador meio/muito louco, seja nas entrelinhas que o releitor pode perceber cuidadosamente esculpidas entre as incoerências e fantasias narradas. Não há elemento político na morte de John Shade, como houve na do Sr. Nabokov, e nem mesmo qualquer heroísmo (o pai dele tentou impedir o atentado, arriscando e perdendo a vida), e não é possível ter dúvidas de que esse elemento de sacrifício certamente marcou a experiência do filho ao absorver aquela tragédia. O que ficou para reaproveitamento, na verdade, é um resumo mínimo do acontecido, convocado nem em suas especificidades circunstanciais do ocorrido, tampouco as consequências psicológicas/subjetivas/traumáticas da coisa. Não sabemos, por meio do romance, o que o autor pensa ou o que sentiu com a tragédia, nem mesmo em leitura atenta, de entrelinhas.

Não dá pra dizer que o ocorrido é a fagulha que originou o incêndio: a fagulha é o ímpeto e a técnica do artista, o lastro de real é talvez parte das árvores, ou as primeiras (ou as de mais destaque, de acordo com alguns) a serem queimadas.

Usando uma metáfora risível e agradável da arte como um teatro de fantoches, daqueles feitos de meia, botões coloridos costurados servindo de olhos, em que se coloca a mão por dentro pra mexer a boca sempre imensa, a forma mais interessante de acessar a literatura (e também a arte de uma maneira geral) é a que pensa o substrato biográfico do autor não como a mão por dentro do fantoche como algo que lhe daria existência primordial, sem a qual o personagem deixa de existir para ser apenas uma meia semi-estragada: muito mais interessante é pensar esse lastro de real como parte do tecido da meia, feita de vários retalhos, costurados em grau variável de cuidado para invisibilidade da emenda, não necessariamente situado do lado frontal e visível do fantoche. Ficando às vezes escondido, há quem acredite que naquela tira de tecido estaria o segredo primordial, sagrado, sem o qual a coisa não se sustenta, mas a verdade é que em qualquer obra realmente bem-sucedida qualquer pedaço que vá ser removido acarretará prejuízo para o todo.

Um comentário:

  1. Excelente, Breno.
    Sobre o assunto, lembrei de um ensaio do Jonathan Franzen no qual ele argumenta como a autoficção é pergunta frequente nas entrevistas que dá. Sua resposta invariavelmente é: sim, 17% da obra é autobiográfica, próxima pergunta. Isso ou coisa parecida.
    Abraço

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