sábado, 29 de setembro de 2012

Outro conto

B7
Ele viu o cavalo comendo a torre. Percebeu então que algo não devia estar dando certo. Ficou chocado com aquilo acontecendo bem na sua frente. Presenciar um desastre tão de perto. Não é todo dia. Ali. Na sua frente.
            Não era tão perto assim. Não conseguiria alcançá-los se tentasse. Mas sua posição permitiu que testemunhasse tudo. Tudinho.
            Talvez assim ficasse acordado. Era o fim daquela enrolação infinita. Melhor assim. Mesmo custando um companheiro seu. Não aguentava mais aquele vai-e-volta sem propósito. Uma enrolação sem fim. Indo de um lado pro outro à toa. Só ocupando espaço. Encheção de saco. Imaginava que era errado pensar assim. Que não deveria pensar assim. Mas pensava.

            Em seguida o cavalo foi pego pela rainha. Sumariamente. Sem chances. E ele viu tudo. Dois notáveis eventos consecutivos. Agora que a coisa anda de vez. Pelo menos foi o que pensou.

            E não há ninguém para pegar a rainha depois. Seria coisa demais. Três assim? Não acontece. Talvez seja errado desejar mais. Mas não aguentava mais o marasmo. Mexeção sem fim. Indo pra lugar nenhum. Podia ser que havia algo por trás disso tudo. Algum plano aí. Podia ser. Mas ele não via nada. Não sabia de nada. Sua posição era desprivilegiada. Nada passava por ele. Só ficava parado. Olhando.
            Que pelo menos tivesse algo pra olhar.
           
            Um de seus colegas mais imediatos avançou para proteger a rainha. Bem ali do lado. Agora qualquer coisa que acontecesse algo com ela o troco viria na hora. E ele poderia ver tudo. Mas o mais provável era que nada acontecesse. O que não impedia que ele ficasse torcendo.
            Ele ficou pensando na rainha. Que poder impressionante. Tudo que ela faz deve ser muito bem pensado. Seu peso é enorme. Como consegue alcançar quase qualquer coisa. Como deve estar sempre sob cuidados. Protegida por outros menos importantes. Claro. Depois dela só há menos importantes. Não só ele e seu colega imediato. Não. Eles estão abaixo de tudo. Até um cavalo e uma torre estão abaixo da rainha. Tudo está abaixo dela.
            Isso não contando o rei. Claro. Mas ele não conta. Não faz nada. Só fica lá fugindo. A rainha é quem faz tudo. Ou ao menos quem pode tudo. É um orgulho simplesmente estar perto dela. Seria pra ele. Se tivesse sido ele o protetor.

            A próxima ação ele só percebe por uns vultos. Algo no cenário se modificou. Algo sutil. Longe demais dele. Fora do alcance de sua visão. Certamente alguma coisa mudou. Não saberia dizer o quê. E não lhe informam o quê. Pra ele ficou na mesma. Como se não tivessem feito nada.
            Ele sabe que fizeram alguma coisa. Só julgam que para ele não faz diferença. Talvez não faça. Mas talvez faça. Pode ser por causa disso que ele se dê mal no fim. Mas não sabe. Não vê e não lhe contam.
            Não sente medo. Sente frustração.

            Um bispo se mexe. Atravessa larga distância. Passa por vários inimigos. Não causa dano algum. Nada de novo.
            Sentia medo. Relutância. Mas era como uma camada por cima de uma grande empolgação interior. Uma forte vontade de participar. Uma possível brutalidade era uma sugestão menos forte que a glória certa prometida. Era isto o principal. Qualquer coisa que depois viesse viria por cima. Sem afetar essa fundação. Vinha, empilhava e, sim, ficava, mas sem parecer que fosse comprometer o principal.
            Não que tivesse escolha. Estar ali ou não. Não nessa questão. Era o que era e ponto final. Mas ainda sim no início ele via algum ideal ali. Ou pelo menos algum motivo. Alguma motivação.
            O comprometimento da base veio depois. O tremor do medo se transformou em um tremor de inquietação. Já não aguentava mais a mesma pasmaceira. A repetição. Parecia esperar por algo desconhecido. A demora era pior por essa indefinição. Na sua imaginação ela se estendia até além do horizonte. Até lá, tudo parado. E a inquietação se transformando em um tédio que atravessava ossos.
           
            Uma torre inimiga se aproximou. Ou uma rainha. Ou alguém como ele. Só deu pra ver o tipo de movimentação. Quem realizou, não. Nem quis saber.
            Talvez pudesse acompanhar melhor os acontecimentos. Isso se não fosse aquele tédio e desinteresse para com ele. Aquela imobilidade imposta. Aquele isolamento irritante. Ficar parado ali só olhando o chão. O pequeno espaço ao qual ele foi designado. Permanentemente, parece. Se o solo fosse da mesma cor que seu corpo talvez já tivesse começado a se fundir. E quando fosse convocado não teria mais como atender às ordens. Excesso de espera. Grudado no chão, não dá, desculpe.

            Riu um pouco de si próprio. Uma imaginação à solta tem seus perigos. Já estava viajando. Mas também. Ia fazer o quê? Perto dele só havia um cavalo. E nem bloqueado por ele o maldito estava. Pra piorar ele era o único que não atrapalhava o de trás, dizia para si mesmo. Qualquer coisa é só passar por cima. Um total inútil. Não vale nada. Que morresse também, o maldito. Mesmo sendo o último que sobrava ali. Que morresse também.

            Não era o último cavalo. O inimigo acabou de mostrar isso. Era um recuo, mas de tal forma que agora ele conseguia enxergar melhor. Antes, não via. Inimigos covardes. Ou não, talvez houvesse alguma ideia por trás.
            Era uma merda. Não sabia de nada. Ficava lá sem saber de nada. Se bobear, ainda tinha um terceiro cavalo sobrando sem ele saber. Que todos fossem pro inferno. Ele não se importava mais. De que adianta?
            Aliás, qual é o propósito disso tudo? Para que estavam todos ali? Para que que ele estava ali? Para que toda essa disputa? Seria realmente necessária? Talvez nem precisasse estar ali...

            Era melhor não pensar nessas coisas. Não servia de nada. Mesmo se concluísse que aquilo era errado. Que não deveriam estar fazendo aquilo. Teria que continuar de qualquer jeito. Não havia escolha.
            Pois que fosse um bom espetáculo. Muita ação, muitas mortes ali na sua frente. Tudo rápido. Se não há sentido, que haja sangue.
            Sua crueldade provinha da frustração daquele marasmo alienado. Não é preciso que ele perceba ou conclua isso e nem que seja com essas palavras para que seja verdade. Sente o tédio e sofre a alienação. Nesse fracasso ele busca alguma saída. O desinteresse com o qual agem com ele é contagioso e revertido. Ele passa a se importar pouco com o todo. É claro que sentiria medo de expressar abertamente essas suas vontades. Provavelmente negaria tudo com veemência caso fosse confrontado.
            Não que fossem perguntar.

            Um conhecimento superior não lhe era impossível. Ele até pressentia de forma vaga aspectos da realidade que lhe eram desconhecidos. Complexidades ocultas. As milhares de possibilidades. Mais do que o número de átomos do universo. Mas mesmo assim... As possibilidades não eram dele. Ele não importava. A vista de cima talvez fosse interessante. De onde estava é que não era. Ele era dispensável. Não tinha voz. Nunca teria.
            Sentia que sua pequenez era tamanha que nem se por algum motivo buscassem seu ponto de vista realmente lhe seria dada a voz.

            Seu colega imediato mais próximo avançou dois espaços. Um salto. Como se tivesse se atirado adiante. Para o nada. Para nada.
            Ele se irritou com aquilo. Mesmo de longe. Não via motivo. Não havia nada lá na frente pra ele fazer. Nada para ele proteger. Nada para ele atacar. Nada. Não havia propósito. Era uma coisa sem razão. Era só para se mostrar. Mostrar que pode. Olha, olha só o que eu faço! Uma imbecilidade. Poder, qualquer um pode. Ele mesmo pode. Os outros todos podem. Não é por isso que precisa fazer. É por merdas assim que se bota tudo a perder.
            Talvez essa afobação fosse para chegar logo no fim do outro lado. A última linha. Ele mesmo já tinha ouvido essa conversa várias vezes. Chegando ele ou um de seus semelhantes no ponto mais longe haveria uma promoção. Poderia virar cavalo, bispo, torre. Rainha, até. Diziam que quase sempre dava rainha. Mais uma rainha no time. Outra força avassaladora. Não sabia como seria a transformação (e no caso da rainha, quase não queria saber). Nem sabia se era verdade. Todos falavam nisso e ninguém confirmava se era verdade.
            Mas talvez fosse. E talvez fosse isso que aquele seu colega afobado queria. Mas era muito longe e o caminho nem estava livre de inimigos. Impossível. Impossível que fosse verdade e impossível que ele chegasse lá. Era só um babaca, mesmo. Um grande babaca.

            O colega que havia avançado foi pego pelo inimigo. Um bispo veio e tomou seu lugar. Fez com que deixasse de existir. Saiu de cena sem deixar mancha nem cheiro. Nem mesmo uma mínima marca no chão de onde desaparecera.
            Sua reação inicial foi de comemoração. Parecia uma punição adequada àquela estupidez anterior. Uma vingança invisível. Como se ele mesmo fosse quem tivesse designado aquilo para acontecer. O responsável distante. Quem assinou embaixo. Isso, durante.
            Depois, outro gosto veio à tona. Uma força por detrás daquilo. Atravessando cortinas até chegar a ele. A limpeza da brutalidade. A eficiência e rapidez. A inconsequência. A leveza na irreversibilidade. Como se fosse fácil. Talvez fosse.
            Como se não custasse nada.
            E poderia ter sido com ele.

            O bispo leva a dele com a torre. O mesmo que matou seu colega agora se junta a ele. Se é que não ficam separados também quando passam pro outro lado, inimigos eternos.
            Não era em metafísicas que ele pensava agora. Sua preocupação era com as coisas mais palpáveis. Agora percebia melhor tudo. Ou talvez parte do todo. E não se parabenizava por isso. Sabia que até alguém ainda mais burro entenderia. E se ele mesmo não fosse tão burro, pensou, já teria percebido antes.
            Seu colega tinha sido isca. Eles sabiam o que aconteceria com o coitado. Lançaram-no cientes disso. Seria um sacrifício necessário. Cede-se um pedaço para abocanhar outro maior. Um bispo faz mais falta do que seu colega. Fazia mais falta do que ele. O saldo era positivo. Uma transação lucrativa.
            Foi assim que o colega foi. Com um monte de esperanças em cima dele. Torcendo para que desse certo. Para que ele morresse. Muito produtivo. Sua morte fazia funcionar o plano.

            E poderia ter sido com ele. Ele também avançaria confiante. Sem saber de nada. Certamente seu colega sequer suspeitava. Os outros que nem ele também não.
            Talvez as torres soubessem. Ou a torre que restava, pelo menos. Talvez até os cavalos soubessem. Ou o cavalo. O que sobrasse. Talvez todos soubessem. Só ele que não. Agora, não mais.
            Parte de si que agora sabia ansiava pela ignorância de antes. Se a verdade era essa talvez fosse melhor não entender. Já não sentia o tédio e o ressentimento. Só a raiva, diferente da raiva que sentia antes. Era um outro amargor.

            O frio que o trespassou não ia embora. Como é que algo ao mesmo tempo atravessa e fica? Como que eles podem fazem isso? Será que não há hesitação? Eles mandam-no à morte como se fosse nada? Certamente com ele seria a mesma coisa. É só aparecer a oportunidade. Seriam os inimigos assim também? Não lembrava disso ter acontecido do outro lado. Uma sucessão assim. Um sacrifício parecido. Talvez eles fossem os corretos da disputa. Certamente esse era um bom indício, não deixar seus próprios morrerem desse jeito. Claro que muitos acabavam mortos de qualquer jeito, mas nenhum assim. De propósito.

            Ele viu os outros decidirem mover o cavalo. Não sabia o porquê. Uma estratégia complexa, um avanço sem propósito, ou talvez outra coisa. Sem dúvida não era para alguma armadilha omo a que há pouco matou seu colega. Eles não fariam isso. Nunca fizeram. Muito menos começariam agora. Ainda mais com um cavalo.

            Ele continuou parado. Felizmente. Agora torcia para que não o escolhessem. Melhor ficar parado ali. Mesmo que mofasse. Mesmo que crescesse raízes. Que grudasse pra sempre no chão. Que não fizesse nada. Que fossem os outros os sacrificados. Nem saberia dizer quem tinha avançado dessa vez. Só se concentrou em si mesmo. Relaxou por completo ao ver que continuaria parado. Por enquanto estaria a salvo. Seria assim até o final? Nessa agonia? Que acabasse logo, então. Vitória, derrota. De qualquer jeito.

            A rainha está morta. De alguma forma isso aconteceu. De algum jeito. Não estava prestando atenção, olhando pra si mesmo. E ela não estava mais lá depois que se deu conta. Mas tinha sido agora. Tinha certeza. Não tem como algo assim ter acontecido antes e ele não ter percebido.
            Eis todos os detalhes do começo da derrota. Foi o que concluiu. Derrota. Sim. Não havia recuperação de um vacilo desses. Vacilo, claro. Um deslize monstruoso. Como é que pode?
            Estava do lado errado. Não de ideais ou motivos. Errado de resultado. Iam perder. Não havia dúvida. Uma sensação terrível. Estar diante do inevitável iminente. Prestes a ser esmagado. Talvez fosse melhor assim. Melhor do que o que havia acontecido até agora. Era o fim da espera. A entediante de antes e a amedrontadora de agora. Sua experiência toda tinha sido uma de desgosto e angústia. O vazio que viria não tinha como ser pior do que tudo que acontecera até agora.

            Não adiantava fazer nada. Tudo depois da morte da rainha seria patético. Tão patético quanto essa manobra agora. Só um exercício idiota. Podia ser qualquer coisa, não tinha jeito. Não precisava nem se mover. Era só esperar parado, se pudesse. Só esperar. Quieto, calado, submisso. Desistir não era a melhor opção. Não era, pois não havia opções de verdade.

            E eles ainda avançam. Apressados. Tudo bem. Ele entende. Ele também teria. Não há por que enrolar. Que viessem. Sem demoras.

            Uma torre anda de lado. Fica na frente do rei inimigo. Uma última tentativa, parece. Uma tentativa de não fazer tão feio. Só pra manter alguma pose. Pra poder dizer depois que...
            Ela ficou alinhada com o rei inimigo. Mas... que babaquice. Apelar assim. Adianta de quê? É só ele mover um pouco e pronto. Sair da frente e só. Isso só atrasa as coisas. Que desespero ridículo. Uma péssima maneira de terminar tudo. Só pra encher o saco. O ressentimento estraga qualquer coisa. Só piora as coisas.
            É só o rei mover pra esquerda que
            Não, não dá. O cavalo comeria.
            Para a direita tem um bispo.
.           Para frente nem tem como considerar, claro, a torre continua lá.
            As diagonais estão bloqueadas.
            A não ser que... Não, não há quem possa. Ninguém tem como entrar na frente. Estão impossibilitados. Todos.
            Seria esta a vitória? É só pegar o rei. E eles não têm escapatória. Não. Não têm.
            É o fim. É a vitória. Assim que ele percebeu isto, algo cresceu dentro de si. Uma sensação esquisita. Passava por cima de todas as outras. Como que se lavasse tudo. Uma alegria esquisita. Quase azeda de tão forte. Pesada. Era como se tudo antes já tivesse sido esquecido. Enterrado pela vitória. Virando pano de fundo para essa novidade maior. A vitória. A glória.
            O esplendor completo.

Um comentário:

  1. Outro conto do meu engavetado livro "Perfume Gasolina", de 2007. Foi um dos que mais deu trabalho para escrever. Reinicia, reinicia, reinicia, etc.

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