sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Resenha antiga e algumas considerações menos antigas (Cordilheira - Daniel Galera)


Em 2008 resenhei "Cordilheira" do Daniel Galera pro Correio Braziliense. A versão do texto que acabou impressa foi mais ou menos metade do tamanho deste, não me disseram qual tamanho o texto teria que ser e este acabou ultrapassando bastante o limite.

Achei que seria interessante colocar o texto aqui e minhas impressões ao ler a resenha de novo depois de quatro anos. Tenho encontrado com bastante frequência gente que leu o livro; parece que alcançou algum sucesso dentro do minúsculo meio literário brasileiro. O que é bom, já que é um autor de valor, mas também uma pena já que o romance anterior é bem melhor e as opiniões que encontrei nem sempre tem sido favoráveis...

O tom da resenha meio frio e profissional não é dos meus favoritos, mas me pareceu apropriado pro contexto (e pelo visto foi, já que o texto foi aceito...). O público-alvo, pessoas que não leram o livro, e o objetivo, informar se o livro vale a pena ser lido, não tornam o exercício o mais interessante possível. Algumas considerações que farei depois do texto eu já tinha pensado na época em que o escrevi, mas chutei não caberiam dentro da proposta (e, considerando que nem o pouco que está aí embaixo coube no espaço reservado pra resenha, meu chute foi acertado).

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Daniel Galera arrisca um estilo diferente ao continuar tratando do indivíduo e da solidão.
            Uma ex-escritora aproveita um convite para uma feira do livro em Buenos Aires para se afastar de todos seus problemas: do suicídio de sua amiga, do fim de um relacionamento amoroso e das incessantes críticas a respeito de sua obsessão de ser mãe. Seu único romance, publicado alguns anos antes, foi bem recebido pela crítica e ganhou prêmios literários, mas a autora se sente totalmente distante dele e da escrita como um todo. Sua viagem é muito mais uma fuga do que realmente participar do debate literário para o qual foi convidada ou até mesmo conhecer a tal “Paris da América Latina”. Depois de alguns dias vagando sem rumo pela cidade, ela se envolve com as atividades de uma bizarra seita literária cujo objetivo é “viver o imaginado”, encenar a vida de seus protagonistas.
            Cordilheira se diferencia dos outros romances de Galera logo na escolha de quem irá protagonizá-lo: Anita é a primeira artista e a primeira mulher. Esta diferença se faz sentir no livro inteiro, como seria de se esperar que acontecesse num conjunto de obra que trata(ou pelo menos que vem tratando) principalmente do indivíduo e da dificuldade de se relacionar com os outros. É o primeiro livro de Galera se abre tanto para as sensações muitas vezes confusas da personagem principal e o primeiro a apresentar uma discussão explícita sobre o papel da arte literária.
            Os que reclamaram de uma certa frieza na escrita em Mãos de Cavalo (que logo na epígrafe admite sua natureza cinematográfica, de ser uma visão de fora) ou em Até o Dia em que o Cão Morreu (pela própria personalidade do protagonista) provavelmente encontrarão em Cordilheira algo mais ao seu agrado. No que poderia ser chamado de uma “coragem literária”, Galera não se intimida nem um pouco ao escrever, na primeira pessoa do sexo oposto, todos os medos e neuroses, sem eufemismos para falar de sexo e da ânsia pela maternidade. A busca por um parceiro freqüentemente se torna desesperada e até mesmo vulgar, mostrando que o autor fica bem longe dos clichês cavalheiros dos que escrevem sobre mulheres com medo de algum julgamento negativo posterior.
            O livro é especialmente eloqüente ao tratar do amor que a protagonista sente pela mãe, que faleceu ao lhe dar a luz e que ela conhece só pelo que o pai lhe conta e pelas anotações dos livros da biblioteca que ela deixou, e também pelo pai, que se dedicou integralmente a criar a filha sozinho e morreu num acidente de carro pouco antes do romance dela ser publicado. No decorrer do livro, fica implícito que a sua obsessão por ser mãe é para preencher o vazio deixado pela morte do pai e a incapacidade de estabelecer relações significativas com o mundo, seja com suas amigas, com seus amantes ou até mesmo com sua carreira de escritora.
            Esta incapacidade é tão forte que até mesmo sua obsessão quase sempre é descrita como uma vontade de “ser mãe”, e não de se “ter um filho”. Sua vontade é de um egocentrismo profundo, assim como quase tudo que ela faz e diz na história. Para ela, não se trata de dar a vida a um indivíduo, e sim de dar um propósito a si mesma, nunca imagina como será assistir à criança crescer, acompanhar a infância e adolescência de uma outra pessoa,  e sim dela mesmo como Mãe, entidade intocável e universal. Até mesmo quando vê pais com seus filhos nas ruas, o foco é sempre  nos adultos, sua dedicação e aparente preenchimento existencial. Sua grande esperança não é obter um amor filial, e sim uma “sincronia”, como ela mesmo coloca como sendo inexistente em seu relacionamento com seu ex-namorado e na verdade lhe é inexistente com tudo.
            Neste plano de sentimentos, o ponto fraco do romance fica na descrição da amizade entre a Anita e Amanda, Alexandra e Julie. O enredo se apressa para levar a ex-escritora embora do país, o leitor não fica sabendo da situação da protagonista antes da viagem. Sua crise com o atual namorado até que fica bem descrita, mas a suposta grande amizade soa postiça, algo cuja força a narradora simplesmente diz que existe e o leitor deve tomar por verdade. Na história, só presenciamos as críticas contínuas e os momentos de crise, sendo que a caracterização de uma delas se resume em achar São Paulo e Buenos Aires cidades provincianas demais para ela. Não se vê um momento descontraído, nem mesmo em uma memória distante no meio de uma viagem de avião ou um momento de tédio no hotel.
            Como é de se esperar em um livro de um projeto como o Amores Expressos, a história é povoada de pequenos quase-nadas circunstanciais de uma viagem turística qualquer à Argentina (muitos nomes de bairros, prédios famosos, pratos típicos, o fato das aeromoças passarem um spray dentro do avião na frente dos passageiros ao entrar no país). Neste caso, Galera foi um pouco além ao colocar a própria literatura argentina, mesmo sendo apenas seus “autores de segunda linha”, como parte integrante do livro. A seita, obscura e ressentida por sua exclusão do mercado e do público leitor, não deixa de ser uma representante relativamente fiel da literatura argentina, que carrega sua complexidade (jogos literários, referências eruditas e estruturas bizantinas) de forma mais ostensiva do que a nossa, mais interessada em indiretas e entrelinhas quase invisíveis.
            Esta outra parte do livro, a do debate estético, acabou sendo desenvolvida de forma desigual. A seita é cheia de figuras curiosas (como o autor é hábil em inventar) e cenas interessantes (como toda boa seita deve proporcionar), mas o desinteresse da protagonista pela arte (mesmo sem “a” maiúsculo) acaba por contagiar o leitor no que diz respeito as questões levantadas. A opinião fervorosa de Holden e seu grupo bate de frente com a apatia de Anita, que simplesmente toma por ridícula as idéias deles e no entanto continua comparecendo às reuniões, talvez simplesmente por falta de algo melhor por fazer.
            Isto acaba por criar uma ambigüidade inquietante. É possível ver que as opiniões de Anita (como a interpretação da vida como uma narrativa e a importância do autor buscar alguma separação de seus personagens) sendo usadas por Galera como base para a escrita de Cordilheira. Isto, no entanto, se dá ao mesmo tempo em que o enredo não consegue deixar de acompanhar as práticas bizarras da seita, seus rituais. É estabelecido um tipo de fascínio por aquilo que se considera errado (ver a literatura com L maiúsculo, como algo maior que a vida, etc), um tipo de romance-tese às avessas. Infelizmente, o desfecho deste envolvimento se dá de forma apressada, roubando o enredo da tensão e força que poderiam alcançar. No final, assim como em todo o livro, as coisas acontecem como que ao léu, uma entre várias possibilidades igualmente válidas, diferentemente da claustrofobia de Até o Dia em que o Cão Morreu ou da estrutura “amarrada” de Mãos de Cavalo.
            É louvável que Galera busque fazer algo novo depois dos elogios quase-unânimes de seu livro anterior. As ausências de uma estrutura e de um rumo forte na narrativa provavelmente serão criticadas por alguns, mas para qualquer leitor mais atento fica claro que trata-se de uma escolha deliberada do autor. Reflete talvez a falta de estrutura da vida de Anita depois da morte do pai, perdida em seus pensamentos e no mundo, perambulando sem destino, seja em Buenos Aires ou qualquer outro lugar pelo qual passe.
CORDILHEIRA, de Daniel Galera. Companhia das Letras, 175 páginas. R$37
Trecho: “Deitada no sofá, pensei que a idéia de um entrelaçamento definitivo entre a literatura e a vida me parecia a mais pura besteira. Descansando ali no centro da sala de estar da casa de Holden, morando com um homem que tinha conhecido havia cerca de dois meses, movida pelo plano mais egoísta que se pode conceber, tentei me ver como uma personagem de mim mesma, mas era impossível. Meu desejo de ter esse filho era real, real até demais, e só de voltar a pensar no assunto minhas pernas se contorciam e eu esquecia de respirar. Meus olhos projetavam fantasias de acasalamento e amamentação no encosto daquele sofá cujo tecido vermelho tinha a cor que vemos quando fechamos os olhos e encaramos o sol num dia de céu limpo.”
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1) Engraçado que o trecho que selecionei parece mesmo um trecho escrito para ser selecionado, é um resumo completinho do enredo do livro e ainda mostra o principal talento de Galera, a construção de imagens, descrições visuais, etc (o que faz da incursão dele para os quadrinhos algo que me causa certa perplexidade, é como um roteirista forte em diálogos passasse a escrever filmes mudos ou estilo Wall-E).

2) Cordilheira foi um livro que ficou na minha memória por alguns motivos. O primeiro, foi a decepção. Mãos de Cavalo é um dos meus romances favoritos da literatura brasileira, e não digo isso por identificação nostálgica sobre as partes dos videogames (a pior parte do livro, mas não pelos motivos apontados por velhacos denunciando uma supostamente absurda presença de cultura pop/comercial). O livro todo é muito bom, a estrutura corajosamente exposta, explícita, o enredo interessante, as imagens, a capacidade de expressar o deslocamento sem ser outra narrativa sobre gente que não faz nada ("Até o dia em que o cão" é uma dos exemplos menos ilegíveis deste gênero chatíssimo). O primeiro capítulo, um dos melhores primeiros capítulos da literatura brasileira (uma literatura pródiga em primeiros capítulos memoráveis).

3) Cordilheira não tem nem a estrutura forte, nem o enredo interessante de Mãos de Cavalo. Ele aposta em uma metalinguagem meio estranha, uma artista cujo desencanto acaba por não despertar muito interesse no leitor. No livro você acaba com dois pólos, os loucos da seita (cujas bizarrias são até divertidas, mas nunca realmente interessantes) ou a ex-escritora, e nenhum dos dois cativa muito. Não que eu exija do livro "uma solução" (mesmo porque não vai existir só "uma" solução para como "deveria ser" o envolvimento com a arte), mas o problema não fica interessantemente encenado ou apresentado. De qualquer forma, os pontos fortes que percebo em Daniel Galera são a imagem, a violência e o deslocamento (vide epígrafe de Bataille em "Até o dia" e a cinematográfica do "Mãos"). Desses três, só o terceiro aparece de forma marcante em Cordilheira, mas ao se fundamentar na metalinguagem acaba partindo para o abstrato, e os talentos de Galera mostram mais expressividade com o concreto.

4) Alguma dúvida quanto a este poder do concreto, é só ler o trecho do parto em Mãos de Cavalo.
É de se acreditar que realmente tínhamos um autor pronto, mesmo. (o próprio autor afirmou em entrevista que estava se arriscando ao escrever Cordilheira, que queria algo diferente)

5) Mas parte do fracasso de Cordilheira provocou uma reflexão interessante, que fez com que a leitura se tornasse bastante proveitosa. O livro repetidas vezes descreve a narradora como introspectiva. A história é narrada na primeira pessoa. Isto é, ou é ela falando que é introspectiva, ou (e acho que é este o mais frequente) ela relatando de outras pessoas descrevendo-a como introspectiva. No livro, lemos 175 páginas de palavras da pessoa introspectiva, ela acabando seu namoro de forma meio explosiva, indo para outro país, se envolvendo com um grupo de malucos, escalando uma montanha. Acontecem muitas coisas.  A descrição de "introspectiva" não acaba ressoando com muita legitimidade com a experiência de leitura do livro, uma vez que ouvimos e ouvimos mais e mais palavras dessa mulher introspectiva, é quase como uma pessoa tivesse nos interpelado de repente no meio da rua e entre suas colocações está uma auto-descrição de timidez. É possível que aquela interpelação tenha sido um momento atípico daquela pessoa, mas ainda assim saímos com pelo menos uma impressão do tipo "bem, não tão tímido assim".

6) Será possível uma personagem introspectiva E eloquente narrar uma história na primeira pessoa e isto não parecer meio "o autor quer que o leitor ache que o personagem é introspectivo" (isto é, uma descrição meio forçada) no lugar de realmente passar a impressão de introspectividade? Pode uma pessoa caladona ser narradora, o mero ato de falar (e ainda mais falar longamente, num romance) não prejudica este qualificativo? A não ser que a coisa descambe para uma estilização do atrofiamento, frases de quatro, cinco palavras em que repetidas vezes o narrador não responde a perguntas feitas a ele... o que facilmente ficaria ridículo.

(se bem que qualquer literatura que busca expressar algo vivo está sempre correndo o risco do ridículo)

7) Um ponto muito positivo do romance é a voz feminina que convence e não é uma estilização de Clarice Lispector e suas xerocadoras. A ideia da existência de uma voz feminina transcendental é ridícula, ninguém discute a existência de uma voz masculina. Cordilheira convence que é uma pessoa de outro sexo narrando sem adequá-la aos moldes de uma expectativa medíocre.

8) Lendo agora a resenha, é curioso ver que hoje eu não lembrava de NADA da eloquência a respeito do afeto da narradora com seu pai, nem a parte da mãe morta. Nem lembrava desses personagens.

9) O próximo livro de Galera se chama "Barba ensopada de sangue". É engraçado que a primeira vez que vi o título, o autor falando em uma entrevista, achei que ele estava brincando, mas agora acho um dos títulos mais interessantes que vi nos últimos tempos. Se formos julgar pelo título (em tempos de e-book não julgamos mais livros pela capa), Mãos de Cavalo também tinha um título bizarro e fascinante, então acho que posso voltar a ter boas expectativas.

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