quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O monge e o sangue

O novo livro do Daniel Galera é ótimo. Escrevo este post poucas horas depois de ter terminado a leitura, ainda estou ruminando o romance um pouco, mas certamente tem muita coisa de interesse nele.  O James Wood começa a falar do Brief Interviews with hideous men do DFW citando vários trechos do livro, para ressaltar seu estilo, seu tom, seu interesse. Auerbach, com maior profundidade do distanciamento histórico, faz o mesmo. Acho um bom método.

[Beta é a cadela do protagonista, o lugar é Garopaba, cidadezinha-linda-turística dez vezes mais cheia e cara no verão que em outras estações (em outro trecho o narrador ou um personagem fala que existe verão e o resto é inverno]

"Volta pela casa andando e empurrando a bicicleta pelas ruas que contornam a lagoa das Capivaras. A luz dos postes tinge de amarelo oleoso o carpete de salvínias que cobre quase toda a superfície da água poluída. Um turbilhão de mosquitos paira em cima do pequeno trapiche apodrecido. Cachorros imensos começam a sair do mato de um terreno baldio e ele enfia o dedo na coleira de Beta por precaução. Muitos integrantes da matilha são cães de raça, rottweilers, pastores alemães ou cruzamentos nos quais reconhece traços de collies e labradores, todos com a pelagem eriçada de suor e frio, imundos e magricelas, com as línguas de fora, percorrendo a noite sem destino aparente como se despistados por um líder fantasmagórico. São figuras típicas da cidade. Cães de grande porte abandonados por veranistas que vivem a centenas de quilômetros dali. Seus instintos não parecem capazes de sufocar  por completo o desejo impossível de voltar para casa"

É um livro sobre a relação da realidade (e seus momentos banais e curiosos) com o mito localmente construído, as distâncias e as conexões entre essas duas coisas, sobre a vontade e as dificuldades de se  isolar, de fugir, sobre fidelidade e as duras penas da coerência. Não é este o enredo do livro, mas é um livro cujo espírito ou corrente subterrânea me faz pensar em uma das poucas frases realmente bonitas ditas pelo Woody Allen (que na maioria das vezes se contenta em usar sua inteligência simplesmente para ser espertinho), algo do tipo "a única coisa que é para sempre é o amor não-correspondido".

A estrutura do livro não é forte como a de Mãos de Cavalo, mas também não é fraca como a de Cordilheira. É um livro longo, às vezes arrastado, mas a lentidão serve seu propósito dentro do todo da coisa. Para mim ficou claro que o tamanho do texto não fez com que o autor deixasse de pensar a utilidade interna de cada pedaço da narrativa.

Meu primeiro instinto seria questionar o valor das discussões sobre budismo e de narrar o contínuo rechaçamento da doutrina pelo protagonista (soa como uma coisa que tá meio que explicando o livro no meio do livro, o que geralmente tira a graça da ficção), sinto a vontade da arrogância do crítico de tomá-la "objetivamente" como uma parte menos interessante da narrativa, mas me dou conta que esta antipatia é uma coisa das minhas leituras mesmo: quando li Ana Kariênina achei um saco todas as discussões sobre o futuro da Rússia, fui ler os Irmãos Karamazov e larguei no início porque não gosto muito quando a ficção vira palco de troca direta e explícita de ideias (o único que me agrada nisto é o Delillo, que faz de forma bizarramente atravessada, numa ironia mais profunda do que a ridícula/engraçadinha que hoje nos contamina). Não taxo de defeito do livro, portanto, especialmente considerando que é uma coisa que faz bastante sentido (talvez até demais) com o resto da história, coloco mais como uma coisa que não gostei tanto. De novo, o poder do Galera está no lirismo e na materialidade. Acho que perto disto o que há de abstrato é fraco. Não é propriamente ruim, só fica em desnível com a qualidade marcante do resto. Felizmente, este é um livro bem calcado no material, no físico.

No meu post sobre Cordilheira eu tinha falado do título, de como eu o achava interessante. Tinha um apelo ligeiramente trash, mas sabendo que o autor estava longe (felizmente) da estética do kitsch ou de ironias tristes de risinho de canto de boca, a impressão inicial era a de um desafio lançado logo na capa. Como escrever um romance straight-face e inteligente com um título deste? Tendo lido, fica o gosto meio ruim de um apelo mais mercadológico para a escolha, porque certamente é um título que chama bastante a atenção na estante da livraria ou em menções en passant, e embora não seja completamente descabido dentro da narrativa, acho que era possível encontrar um título melhor para o livro. A calmaria (necessária) da primeira parte do livro, do protagonista estabelecendo sua rotina no lugar novo é lido com uma sobrancelha meio erguida, quase fazendo com que o leitor feche rapidamente o romance para verificar na capa se o título é aquele mesmo. Sem contar que (como tem um pouco de spoiler, continuo no comentário).

Talvez no futuro eu consiga tirar um texto mais coerente e detalhado dessa leitura. Há uma metáfora interessantíssima (ou pelo menos alguns desdobramentos mais profundos) na condição neurológica do protagonista, e também há terreno fértil para um pensamento sobre o que se entende por masculinidade nos dias de hoje e no passado. No momento estou só naquela satisfação meio silenciosa de ter acabado de ler um bom livro.

2 comentários:

  1. Entendo que essa dissonância do título com a lentidão do início do livro pode motivar alguns leitores mais afobados a continuar na leitura, mas acho que acaba por colocar um foco quase exclusivo no fim do livro.

    Sem contar que o que acontece quando finalmente chega o momento é uma coisa meio boboca tipo Peter Griffin: http://www.youtube.com/watch?v=aA8OOJjjvjU

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  2. Um livro que faz algo foda com este tipo de título é o Plot against america, do Philip Roth, que narra a ascensão de um governo antissemita nos EUA nos tempos da segunda guerra mundial, se elegendo com base no isolacionismo. A princípio se imagina que o complô antiamericano é o dos próprios antissemitas virulentos e violentos, quando na verdade é o termo que eles usam para falar dos "judeus belicistas" (os good guys da parada). Um título irônico e muito inteligente.

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