Escrevendo o romance eu me sinto como que esculpindo um bicho. Quando eu vou trabalhar nele, boto minhas mãos na criatura, ele é de pedra, estátua. Construo seu esqueleto e músculos, imagino sua movimentação, projeto (ingenuamente, talvez) sua aerodinâmica. Mas ele voa apenas na leitura dos outros. A imagem prévia que eu tenho do livro (personagens, cenas, ideário, autenticidade intelectual e emocional diante de minhas próprias experiências, o atraso que sinto diante dos autores que mais admiro) é lastro insuperável para que ele consiga voar na minha cabeça.
Posso pedir para outros levarem ele para um voo, me contar se a coisa sequer saiu do chão, se plana tranquilo em tardinhas sem nuvens, se de fato dá rasantes quando decide dar rasantes ou se cai de cara no chão sequer de forma engraçada (apenas triste e constrangedora), mas por mais que me façam relatos pormenorizados de suas experiências, quando eu retorno para o estúdio para retrabalhar um detalhe e boto de novo minhas mãos no bicho, ele é de novo estátua, de novo pedra.
Posto de forma menos pomposa, é uma tristeza ser realmente impossível ler o próprio texto, só sendo possível revisá-lo e retrabalhá-lo. Não por uma inveja de egolatria incontrolável ("nossa, queria ser meu leitor"), e sim por realmente não ser possível ter certeza se a coisa deu certo mesmo ou não na mesma segurança como eu sei que meus livros favoritos dão certo.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
Inclusividade narrativa
Se em uma história você tem um homem branco espancando outro homem branco, a história é racista porque efetivamente cria um mundo em que só existem brancos, coadunando com uma visão de que negros não merecem a nossa atenção.
Se em uma história você tem um homem branco espancando um negro, a história é racista porque é uma power-fantasy que encena a vontade de mestre punindo os escravos, a vontade que há de subjugar o negro. Racistas vão adorar ler este espancamento.
Se em uma história você tem um homem negro espancando um branco, a história é racista porque mostra os negros como sendo uma ameaça à civilização (branca), que o branco deve sempre ficar atento e pronto pra se proteger.
Se em uma história você tem um negro espancando um negro, a história é racista porque reforça uma noção de que eles seriam assim mesmo, violentos, selvagens, e que é melhor manter distância.
Moral da história: A violência está sempre errada.
(Só uma variantezinha daquela história do casal andando com um burrico, qualquer combinação de utilização do animal há de ser criticada por quem está ali para criticar)
(Só uma variantezinha daquela história do casal andando com um burrico, qualquer combinação de utilização do animal há de ser criticada por quem está ali para criticar)
Mais Gass
Traduçãozinha minha de um parágrafo do The Tunnel, do Gass. Ó:
Olhos selvagens eram outro sinal. Era algo que eu raramente vi - a expressão de um estado extático - ainda que muito seja tolamente escrito deles, como se crescessem feito alcachofras de Jerusalém pela estrada. Os olhos são negros, certamente, seja lá qual for sua cor normal; eles são negros porque sua percepção se condensou ao carvão, porque o toque e gosto e perfume do amante, o clamor de uma palavra suja, um rio bem-vindo, foram reduzidos no calor da paixão a uma cinza negra, e este resíduo não-queimado de oxidação, este cálice, substitui a pupila de forma que não mais recebe e sim emite, e cada cabelo está em pé, ainda que talvez apenas espalhado em um travesseiro, e as narinas estão alargadas, boca aberta, bochechas sugadas de forma que a face inteira parece tão espremida como uma fruta sem suco; eu sei, pois uma vez Lou adentrou estra selvageria enquanto nos absorvíamos um ao outro, tentando beijar, não meramente forçosamente, não a caveira de nossos esqueletos, mas a caveira e todos os ossos em que o próprio ser essencial é dependurado, beijo tal que o contorno de nossos espíritos é mexido também, o que é conhecido como o máximo dos beijos de língua, a foda mais funda, quando o pau faz um conceito gritar e gozar; eu sei, pois mais de uma vez, embora não frequentemente, eu tremi para dentro desta outra região, quando uma boca me puxou por sua generosidade para dentro do reino do desemaranhar, e cada sensação jazia estendida como um lago, cada nó afrouxado, e a cola das coisas dissolvia. Eu sabia que carregava o olhar selvagem então. O maior presente que você pode dar a outro ser humano é deixar que ele te aqueça até, no passar para além do prazer, suas defesas caiam, seu ego se rende, as estruturas derretem, prédios despencam, mentiras, preferências, vaidades, são sopradas pra longe em vento nenhum, e você retorna, não ao barro de onde você veio - este recipiente cru - mas ao momento original de inspiração, quando você era o sopro em nada abreviado de Deus.
Olhos selvagens eram outro sinal. Era algo que eu raramente vi - a expressão de um estado extático - ainda que muito seja tolamente escrito deles, como se crescessem feito alcachofras de Jerusalém pela estrada. Os olhos são negros, certamente, seja lá qual for sua cor normal; eles são negros porque sua percepção se condensou ao carvão, porque o toque e gosto e perfume do amante, o clamor de uma palavra suja, um rio bem-vindo, foram reduzidos no calor da paixão a uma cinza negra, e este resíduo não-queimado de oxidação, este cálice, substitui a pupila de forma que não mais recebe e sim emite, e cada cabelo está em pé, ainda que talvez apenas espalhado em um travesseiro, e as narinas estão alargadas, boca aberta, bochechas sugadas de forma que a face inteira parece tão espremida como uma fruta sem suco; eu sei, pois uma vez Lou adentrou estra selvageria enquanto nos absorvíamos um ao outro, tentando beijar, não meramente forçosamente, não a caveira de nossos esqueletos, mas a caveira e todos os ossos em que o próprio ser essencial é dependurado, beijo tal que o contorno de nossos espíritos é mexido também, o que é conhecido como o máximo dos beijos de língua, a foda mais funda, quando o pau faz um conceito gritar e gozar; eu sei, pois mais de uma vez, embora não frequentemente, eu tremi para dentro desta outra região, quando uma boca me puxou por sua generosidade para dentro do reino do desemaranhar, e cada sensação jazia estendida como um lago, cada nó afrouxado, e a cola das coisas dissolvia. Eu sabia que carregava o olhar selvagem então. O maior presente que você pode dar a outro ser humano é deixar que ele te aqueça até, no passar para além do prazer, suas defesas caiam, seu ego se rende, as estruturas derretem, prédios despencam, mentiras, preferências, vaidades, são sopradas pra longe em vento nenhum, e você retorna, não ao barro de onde você veio - este recipiente cru - mas ao momento original de inspiração, quando você era o sopro em nada abreviado de Deus.
sábado, 11 de outubro de 2014
Why we write - Robert Coover
Acabou de chegar minha cópia do Public Burning. Ainda não comecei a ler, mas bundeando pela internet encontrei este parágrafo aqui que deu vontade de largar tudo que eu estou lendo para atacar logo a obra desse cara. Por que eu esperei tanto tempo para ir atrás dele?:
“Why we write.
Because art blows life into the lifeless, death into the deathless. Because art's lie is preferable, in truth, to life's beautiful terror. Because as time does not pass (nothing, as Beckett tells us, passes) it passes the time. Because Death, our mirthless master, is somehow amused by epitaphs. Because epitaphs well struck give Death, our voracious master, heartburn. Because fiction imitates life's beauty, thereby inventing the beauty life lacks. Because fiction is the best position, at once exotic and familiar, for fucking the world. Because fiction, mediating paradox, celebrates it. Because fiction, mothered by love, loves love as a mother might her unloving child. Because fiction speaks, hopelessly, beautifully, as the world speaks. Because God, created in the storyteller's image, can be destroyed only by its maker. Because in its perversity, art harmonizes the disharmonious, and because in its profanity, fiction sanctifies life. Because, in its terrible isolation, writing is a path to brotherhood. Because in the beginning was the gesture and in the end the come, as well in between what we have are words. Because of all arts, only fiction can unmake the myths that unman men. Because of its endearing futility, its outrageous pretentions. Because the pen, though short, casts a long shadow upon (it must be said) no surface. Because the world is reinvented every day and this is how it is done. Because there is nothing new under the sun except its expression. Because truth, that illusive joker, hides himself in fictions and must therefore be sought there. Because writing, in all spaces unimaginable vastness, is still the greatest adventure of all. And because, alas, what else?”
Alguns minutos de um sábado de manhã:
Por que escrevemos. Porque arte sopra vida naquilo que não tem vida, morte naquilo que não tem morte. Porque a mentira da arte é preferível, na verdade, ao belíssimo terror da vida. Porque da maneira que o tempo não passa (nada, como nos diz Beckett, passa) ela faz passar o tempo. Porque a Morte, nosso mestre mal-humorado, de alguma forma se diverte com epitáfios. Porque epitáfios bem atingidos dão à Morte, nosso mestre voraz, azia. Porque ficção imita a beleza da vida, assim inventando a beleza que falta à vida. Porque ficção é a melhor posição, a um mesmo tempo exótica e familiar, para foder o mundo. Porque ficção, mediando paradoxo, celebra-o. Porque a ficção, parida e criada amorosamente, ama o amor como uma mãe poderia amar um filho desamoroso. Porque a ficção fala, sem esperança, belissimamente, como o mundo fala. Porque Deus, criado à imagem do contador de histórias, pode ser destruído apenas pelo seu criador. Porque em sua perversidade, arte harmoniza o desarmonioso, e porque em sua profanação, a ficção santifica a vida. Porque, em seu terrível isolamento, a escrita é um caminho à irmandade. Porque no início havia o gesto e no fim vindouro, assim como no que há entre os dois o que temos são palavras. Porque de todas as artes, apenas a ficção pode desfazer os mitos de desumanizam humanos. Por causa de sua futilidade cativante, suas pretensões escandalosas. Porque a caneta, ainda que curta, projeta uma longa sombra por cima de (devemos dizer) superfície nenhuma. Porque o mundo é reinventado todos os dias e é assim que ele se faz. Porque não há nada de novo embaixo do sol exceto sua expressão. Porque a verdade, este coringa ilusivo, se esconde em ficções e assim é lá onde deve ser buscado. Porque escrever, em todos os espaços de vastidão inimaginável, é ainda a maior aventura de todas. E porque, afinal, o que mais?"
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O romance ainda está progredindo. Página 460, no momento. Espero conseguir terminar um primeiro rascunho completo antes do final do ano.
quarta-feira, 25 de junho de 2014
A sina do personagem intelectualizado
Fala-se muito de certo narcisismo da produção literária mais recente, digo, de algumas décadas para cá. De como se tornou muito freqüente, até mesmo dominante, o protagonismo de personagens intelectuais: o romance que não tem um escritor, crítico, estudioso, artista plástico, músico ou o que seja como protagonista ou pelo menos personagem-interlocutor do protagonista (aquele secundário sempre presente) se tornou figura minoritária na paisagem literária atual. Há quem diga, talvez não sem sua parcela de razão, que se trata de certa falta de visão dos ficcionistas, falta de capacidade de enxergar para além do próprio umbigo, dificuldade de conceber mundos de percepção que não sejam aqueles com o qual já trabalha e que isto seria justamente um dos territórios mais fortes da ficção, o exercício de certa capacidade (forjada?) de entrar na cabeça de outra pessoa. A ficção como fomentadora de empatia, um exercício de certo des-egocentrismo. Grita-se “chega de alter-egos”, para esses escritores que só falam de arte e de si próprios. Eu mesmo passei por certo esforço de sair desta conversa circular de arte-forma-artista-discurso- arte-forma-artista-discurso, que por si só pode ser fascinante (talvez só para quem fala), uma vez que se tomamos como o objetivo da obra de arte textual é o de obliquamente capturar como é que é estar vivo sob determinadas circunstâncias (históricas, psicológicas, sociais e sensoriais) a conversa sobre a forma simplesmente não dá conta sozinha de tudo que a literatura pode alcançar.
Mas lendo recentemente o Everything That Rises Must Converge, da Flannery O’Connor fica para mim bem claro que a criação de personagens intelectualizados (artistas, etc) e até mesmo a instalação deles como protagonistas não pode passar por uma categorização taxativa tão simplificada como “falta de alcance humano da visão do autor” ou “fascínio com umbigo”, da mesma forma como narrativas diferentes com personagens economicamente desfavorecidos podem funcionar das mais diversas formas no campo político. Não só é possível fugir do alter-eguismo quando se coloca um protagonista intelectual (afinal, existem tantos históricos diferentes de leitura quanto existem leitores, não existe só um “jeito de ser intelectual”), como o próprio uso do alter-ego pode dar resultados diferentes: basta comparar o Coetzee com o Bukowski. Recomenda-se não descrever a existência de um protagonista intelectualizado como "simplicidade imaginativa" do romancista sem antes prestar bastante atenção (ainda mais estando ainda na moda o tal jogo de espelhos, falsas referências, etc) nos detalhes de cada obra.
Há uma chance significativa desta predominância da figura do intelectual protagonizando narrativas literárias ser apenas o reconhecimento do lugar da literatura no nosso mundo de compartimentos cada vez mais específicos e isolados: a literatura não tem mais público de milhões, e às vezes nem mesmo de milhares (olá, minha dúzia de leitores), e o escritor talvez não esteja cortando seu canal comunicativo mais amplo ao se especializar neste tipo de personagem mais próximo dele; talvez esteja apenas reconhecendo a realidade que rodeia seu escrever/publicar e tentando estabelecer com mais força/rapidez o laço leitor-texto, fazer com que o leitor (provavelmente intelectualizado, ao menos um pouco) de sua obra preste atenção mais rapidamente em questões mais específicas com as quais ele quer lidar.
Trechinho do Everything that Rises (nada ilustrativo do que eu disse aí em cima, tá selecionado porque é legal mesmo):
"Parker sat for a long time on the ground in the alley behind the pool hall, examining his soul. He saw it as a spider web of facts and lies that was not at all important to him but which appeared to be necessary in spite of his opinion."
segunda-feira, 9 de junho de 2014
Artigo-resumo da minha dissertação
Aí, para quem não teve tempo ou ânimo de ler minha dissertação:
http://etudeslusophonesparis4.blogspot.fr/2014/06/auge-e-derrocada-do-empenho-literario.html
http://etudeslusophonesparis4.blogspot.fr/2014/06/auge-e-derrocada-do-empenho-literario.html
sábado, 17 de maio de 2014
Abre aspas
Eu nem sei o que eu daria para escrever assim
(algumas coisas ficam soltas sem o contexto, mas considerando que outras ficam soltas mesmo com o contexto eu vou deixar assim mesmo, sem legendas para entendimento dos detalhes. O principal é a música, mesmo)
---
"The years were never an element, because my parents didn't age, they simply sickened. My father was mean and cocky like Cagney all the way to the dump. Flat on his back, his bones poking this way and that like the corpses in the camps, he still had a fiery eye, as though, but for those two coals, the grate held ash. There's no easy way out of this life, and I do not look forward to the day they put those tubes up my nose, and a catheter shows my pee the way out like some well-trained servant. I saw how my father's body broke his spirit like a match; and I saw how my mother's broken spirit took her body under the way a ship sinks after being disemboweled by an errant berg of ice.
My father suffered thirty years of pain. A continent could call it a war. It was an unjust fate. It was undeserved. And my mother drank for nearly the same, although she beat my father to the grave by a good five, having decayed for a decade before they lowered her away - a leftover spoiling in the light. Fare thee well, I say, now that the words have no designation.
My father taught me how to be a failure. He taught me bigotry and bitterness. I never acquired his courage, because I caught a case of cowardice from my mother - soft as cotton - and I was born with her desperate orality, her slow insistent cruelty - like quicksand - her engulfing love.
My mother drank to fill her life with the warmth which had long ago leaked out of it; and my father hurt like hell because his mother had, because he had inherited the wrong proclivities, his arthrities an arch between two sagging generations.
My mother drank to let down her guard and allow her dreams to flood her like the cheap enamel basin they would later furnish her to puke in; while the aspirin my father fed on put a hole in his stomach like the one I have, having inherited the wrong proclivities, too - passivity like pavement over a storm.
My mother drank because, at menopause, she missed the turn and struck a wall, her hormones went out of balance like the weights of a clock, and she couldn't tell time anymore; while my father held two jobs, one at his architect's office and another at the store, because the Depression practically wiped out his practice, and Feeney's, also desperate, took him in at a family rate to let two others starve, and changed its name at the same time to FEENEY'S FAMILY FURNITURE, not so much to honor my father's presence as to justify the junk the store now stocked; and there he worked long heartless hours, a foot backward in its shoe, filling the blank side of unused bills of sale with plans for gingerbread houses, garages too grand for their cars, gas stations designed as castles, banks like forts, stores in the cute shape of their specialty (often shoes), bars which were made entirely of glass brick, churches which were all spire, and little neighborhoods which were nothing but wall; then, as the world began to recover, my father's wasted efforts having bled his strength, he began to decline, and soon couldn't draw anymore, and soon couldn't sell sofas either, only sit in them, until they became too low and soft and mortal for him, his cane like a tree towering over him, his strength only in the grit of his jaws, in a mean streak now grown green and brave.
My mother had no steel. All puff - though sensitive - she was a cotton wad, and powdered her nose instead of washing it, and painted her nails instead of cleaning and cutting them, though when her hand shook, color crossed the cuticle, and sometimes the tips of her fingers were red. So she drank to the point of suicide, because a life which not only lacked love, but couldn't even catch a little indifference, like a net to contain air, was intolerable, because she hadn't a single god, or goddamned thing to do, or anything she could look back on as done - completed or accomplished - only one pleasureless screw which produced an ingrate and a monster upon which she nevertheless pinned her hopes with exactly the same chance for success as anyone would who tried to drive a nail into a passing cloud - a son to whom she threw her soul and considerable peril, like a stone into a paper boat"
(The tunnel, William H Gass)
quarta-feira, 14 de maio de 2014
Teorema Dixie Kong de relativismo interpretativo
No clássico Donkey Kong
Country 2, os desenvolvedores do jogo encararam o desafio de fazer uma
sequência para um sucesso estrondoso como o do jogo original seguindo o caminho
da dificuldade aumentada: o que o primeiro jogo tinha de difícil-só-às-vezes o
segundo tinha de crueldade quase constante. Para dar uma variada na
jogabilidade quase idêntica (joguinho de plataforma estilo Mario em seu auge,
naquela época), trocaram o personagem-protagonista, Donkey Kong, por uma
macaquinha, Dixie Kong, talvez a primeira protagonista feminina em jogo de
plataforma tradicional graúdo da Nintendo (Metroid não conta) desde a princesa
peach naquele Mario 2 malucão.
O Dixie Kong tinha uma
característica especial: ao pular, poderia flutuar um tempinho antes de cair se
o jogador segurasse o botão do pulo. Em um jogo com vários buracos-sem-fundo a
serem evitados para conseguir se chegar até o fim das fases, trata-se de algo
próximo de um super-poder: ao conseguir a personagem, imediatamente troca-se
para ela, a não ser que o jogador prefira economizar esta capacidade para
momentos ainda mais difíceis, ficando com o personagem mais fraco só para que ele
poder morrer primeiro.
Dilema discussão-de-gêneros: como
entender este super-poder? A Dixie sendo melhor do que o personagem masculino
de imediato aponta para um empoderamento num esquema girl-power, we can do it
(mulher mostrando o muque), a preterição um caso raro se tratando de algo fora
do espectro tido como feminino (cuidar de casa, doente, neném, etc) de
atividades. Mas se pensarmos no esquema identificativo que existe em personagens de videogames
(brasileiros de início se revoltam com o Blanka sendo daquele jeito, faz-se
pesquisas sobre World of Warcraft perguntando a jogadores homens que jogam com
personagens femininas o porquê deles fazerem isto, etc), é possível pensar que
a personagem feminina sendo mais forte existe para que as garotinhas que fossem
jogar o jogo e automaticamente escolher a macaquinha (olha o cabelo dela!)
teriam menos dificuldade na hora de
enfrentar os desafios do jogo. Neste caso, seriam os desenvolvedores colocando
a habilidade das jogadoras abaixo da dos jogadores, dando a elas uma ajudinha.
E aí, o jogo é feminista (girl
power!) ou machista (“vamos facilitar para as meninas...”)?
Podemos ainda colocar mais duas
possibilidades: pode ser uma homenagem ao Mario 2, do NES, em que a princesa
peach tinha poder semelhante, ou os desenvolvedores do jogo decidindo depois de
desenhar todas as fases que a dificuldade do jogo precisava de uma atenuada e
que a personagem nova poderia comportar mais facilmente poderes novos do que o
personagem que já aparecia (sem este poder agora tão necessário) no jogo
antigo. Seria esse poder um aceno para o histórico dos jogos da Nintendo ou uma
questão técnica de design de jogos?
É possível pedir uma resposta aos
desenvolvedores de jogos, mas aí a pessoa que faz isto esquece de que nossos
atos não se resumem à nossas intenções (demorei pra sacar que intentional
fallacy tinha cabimento para bem mais do que só literatura). O ato, realizado,
está livre para ser interpretado, com o limite apenas (ainda assim frequentemente ignorado)
de se prestar atenção às especificidades do ato.
Qual desses quatro caminhos interpretativos escolher?
Se a pessoa passou a infância
jogando Super Nintendo e tem enorme carinho pelo hobby e hoje anda por esses
círculos que discutem gênero, vai adotar a interpretação Girl Power, querendo
defender um pouco os videogames dos ataques de lixo-cultural que até hoje
resistem em parte do discurso sobre eles.
Se o desejo é de se transmitir a imagem de uma pessoa extremamente crítica, extremamente exigente, extremamente incisiva
e dura, vai falar que o poder da Dixie Kong é machista, subestimando meninas,
dando a elas a ideia que tudo na vida que vale a pena ser conquistado será
conquistado pelo que ela tem de feminino (o poder de flutuar funciona num
esquema pigtail-helipcoter, isto é, o cabelinho bacaninha dela que é o poder),
etc etc.
Se a pessoa quer pagar de erudito
dos videogames (hahahahaha), vai falar que é homenagem ao Mario 2. Se quer
pagar de interessado-no-lado-técnico, o-importante-é-o-design-e-jogabilidade,
vai falar que o poder é uma necessidade do jogo e que tentar decantar sentido
disso é não entender que jogos são sistemas de interação e desafio etc etc
sábado, 29 de março de 2014
Postagens do facebook
Vai que some de lá. Mais difícil sumir de lá e sumir daqui também.
Parece automático agora para maioria das pessoas ir ao aeroporto e ser acometido pela preocupação patriótico-cidadã de nãovaidartempo, imaginanacopa, etc. Já eu acho que se desse tudo certo na copa (hahahahahaha) e o país desse uma boa impressão para estrangeiros seria como ir visitar uma família em que o pai espanca todos os dias os filhos e a esposa exceto no dia de visita e tá lá todo mundo bonitinho e sorrindo pros convidados.
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"Sou contra este governo que está aí. Quero a volta do governo que perseguia e torturava as pessoas que eram contra o governo!". E esse povo, todos os seis, doze, trinta infelizes que conseguem reunir nas capitais do país, ainda vira notícia.
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Dica: não escolham para mestrado um assunto que está quase fazendo aniversário. Depois da defesa, você tendo ânsia só de ouvir palavras-chaves aparentadas do assunto, noticiários e papos zeitgeistianos ficam ainda mais chatos de aturar.
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Uns meses atrás queriam tirar a palavra "crazy" para falar negativamente de mulheres. Desmerece sentimentos, etc. Hoje querem tirar a palavra "bossy" (mandona). Vamos fundar um movimento de vanguarda e banir todas as palavras possivelmente negativas quando nos referirmos às mulheres?
(O que mais me espanta é o nível computador-usando-searchwords de entendimento de comunicação humana)
(O que mais me espanta é o nível computador-usando-searchwords de entendimento de comunicação humana)
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Trechos do Blood Meridian, relido por mim nesses dias:
"Eram terras remotas para novidades os lugares em que ele passava e naqueles tempos incertos homens brindavam a ascenção de regentes já depostos e saudavam a coroação de reis assassinados e em suas sepulturas"
"Em uma parte elevada da beira ocidental do lago seco eles passaram por uma cruz de madeira grosseira onde Maricopas haviam crucificado um Apache. O corpo mumificado dependurado na arvorecruz com sua boca escancarada em um buraco cru, uma coisa de couro e osso desengordurada pelos ventos pedra-pomes que saem do lago e a árvore pálida de suas costelas aparecendo pelos farrapos que se dependuravam de seu peito."
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Pedacinho do Revolutionary Road, do Yates
"And how could he ever tell April that these abysmally sentimental words had sent an instantaneous rush of blood to the walls of his throat? How could he ever explain, without bringing down her everlasting scorn, that for a minute he was afraid that he might weep into his melting chocolate ice cream?"
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A man in his life - Yehuda Amichai (tr. Chana Bloch & Stephen Mitchell)
A man doesn't have time in his life
to have time for everything.
He doesn't have seasons enough to have
a season for every purpose. Ecclesiastes
Was wrong about that.
A man needs to love and to hate at the same moment,
to laugh and cry with the same eyes,
with the same hands to throw stones and to gather them,
to make love in war and war in love.
And to hate and forgive and remember and forget,
to arrange and confuse, to eat and to digest
what history
takes years and years to do.
A man doesn't have time.
When he loses he seeks, when he finds
he forgets, when he forgets he loves, when he loves
he begins to forget.
And his soul is seasoned, his soul
is very professional.
Only his body remains forever
an amateur. It tries and it misses,
gets muddled, doesn't learn a thing,
drunk and blind in its pleasures
and its pains.
He will die as figs die in autumn,
Shriveled and full of himself and sweet,
the leaves growing dry on the ground,
the bare branches pointing to the place
where there's time for everything.
to have time for everything.
He doesn't have seasons enough to have
a season for every purpose. Ecclesiastes
Was wrong about that.
A man needs to love and to hate at the same moment,
to laugh and cry with the same eyes,
with the same hands to throw stones and to gather them,
to make love in war and war in love.
And to hate and forgive and remember and forget,
to arrange and confuse, to eat and to digest
what history
takes years and years to do.
A man doesn't have time.
When he loses he seeks, when he finds
he forgets, when he forgets he loves, when he loves
he begins to forget.
And his soul is seasoned, his soul
is very professional.
Only his body remains forever
an amateur. It tries and it misses,
gets muddled, doesn't learn a thing,
drunk and blind in its pleasures
and its pains.
He will die as figs die in autumn,
Shriveled and full of himself and sweet,
the leaves growing dry on the ground,
the bare branches pointing to the place
where there's time for everything.
Início de conto do Richard Yates
Ótimo escritor, este Richard Yates. Merece mesmo ser desenterrado do esquecimento. Aqui um parárafo de abertura de conto que achei bom o bastante para querer traduzir (acho que um pouco do estilo límpido e lírico se perdeu no caminho, mas não sei bem apontar onde):
"Por um curto período quando
Walter Henderson tinha nove anos de idade ele pensou que cair morto era o
verdadeiro zênite do romântico, e também pensavam isto uma porção de seus
amigos. Achando que a única parte verdadeiramente recompensadora de qualquer
brincadeira de polícia-e-bandido era o momento em que você fingia ser atingido,
agarrava o coração, derrubava a pistola e despencava na terra, eles logo
dispensaram com o resto do jogo – o afazer trabalhoso de escolher lados e sair
andando de fininho – e refinaram o jogo até sua essência. Tornou-se uma questão
de performance individual, quase uma arte. Um deles de cada vez corria
dramaticamente pela crista de um morro, e em certo ponto a emboscada ocorria:
uma sacudida simultânea de pistolas de brinquedo apontadas e um coro daqueles
sons guturais em staccato – uma espécie de sussurro rouco “Pou! Pou!” – com o
qual garotinhos simulam o barulho de tiroteio. Então o performer se interrompia,
virava, pairava por um momento em agonia elegante, despencava e caia morro
abaixo em um girar de braços e pernas e uma nuvem esplêndida de poeira, e
finalmente se esparramava achatado no fim, um cadáver amarrotado. Quando ele se
levantava e batia nas roupas os outros criticariam sua forma (“muito bom” ou
“muito duro” ou “não pareceu natural”), e então seria a vez do próximo jogador.
Era isto tudo que havia no jogo, mas Walter Henderson adorava aquilo. Ele era
um garoto pequeno, mal coordenado, e esta era a única coisa minimamente
parecida com um esporte na qual ele se distinguia. Ninguém poderia se equiparar
à forma que ele se entregava na hora de arremessar o próprio corpo flácido
morro abaixo, e ele se deleitava na pequenina aclamação que aquilo lhe
garantia. Com o tempo outros se cansaram do jogo, depois de alguns garotos mais
velhos rirem deles; Walter relutantemente se dirigiu a formas mais saudáveis de
brincadeira, e pouco tempo depois ele tinha esquecido daquilo."
quarta-feira, 5 de março de 2014
Mais Delillo traduzido
Aqui uma outra parte do Falling man. É a parte final, mas só dá pra chamar de spoiler pra quem não viveu ou viu o evento de quase treze anos atrás. É outra parte que me impressionou muito, mas relendo (de novo) agora, o impacto não foi tão forte quanto da releitura da parte que postei primeiro. Como eu já fiz, e não recebi notícia de infração de direitos autorais (apesar de provavelmente ser) pela outra postagem, aqui vai minha traduçãozinha:
---
A aeronave estava sob controle agora e ele sentou no banco
retrátil do outro lado da parte em que se guarda a comida, vigiando. Era para
ele ou manter vigília ali, fora da cabine do piloto, ou patrulhar o corredor,
estilete em mãos. Ele
não estava confuso, apenas recuperando o fôlego, aguardando um momento. Isto
foi quando ele sentiu uma coisa na parte superior do braço, a dor aguda de uma
incisão em sua pele.
Ele sentou virado para a divisória, com o banheiro atrás de
si, exclusivo à primeira classe.
O ar estava espesso com o spray de pimenta que ele tinha
usasdo e havia o sangue de alguém, o sangue dele, drenando pelo punho de sua
camisa de manga comprida. Era o sangue dele. Ele não procurou a fonte da ferida
mas viu mais sangue começando a aparecer pela manga subindo pelo ombro. Ele
pensou que talvez a dor estivesse ali antes mas ele estava só agora se
lembrando de senti-la. Ele não sabia onde estava o estilete.
Se outras coisas estavam normais, em seu entendimento do
plano, a aeronave estava direcionada para o corredor do rio Hudson. Esta foi a
frase que ele ouviu de Amir várias vezes. Não havia janela que ele poderia
olhar sem sair do assento e ele não sentiu necessidade de fazer isto.
Ele estava com seu celular na função vibrar.
Tudo estava parado. Não havia sensação de voo. Ele ouvia
barulho mas sentia nenhum movimento e o barulho era o tipo que se sobrepõe a
tudo e parecia completamente natural, todos os motores e sistemas que se
transformam no ar em si.
Esqueça o mundo. Torne-se desatento da coisa chamada mundo.
Todo o tempo perdido da vida acabou agora.
Este é seu longo desejo, morrer com seus irmãos.
Sua
respiração vinha rapidamente. Seus olhos queimavam. Quando ele olhou
para a esquerda, em parte, ele poderia ver um assento vazio na cabine de
primeira classe, no corredor. Mais adiante, a divisória. Mas havia uma vista,
havia uma cena de imaginação clara lá pelo fundo de sua cabeça.
Ele não sabia como tinha se cortado. Ele tinha sido cortado
por um de seus irmãos, de que outra maneira, acidentalmente, na disputa, e ele
deu boas vindas ao sangue mas não à dor, que estava se tornando difícil de
suportar. Então ele pensou em algo que ele tinha há muito esquecido. Ele pensou
nos garotos Shia no campo de batalha em Shatt AL Arab. Ele os viu
saindo das trincheiras e redutos e correndo atravessando os lodaçais na direção
das posições inimigas, ocas abertas em gritos mortais. Ele tirou força disto,
vendo os garotos sendo abatidos em ondas por metralhadoras, garotos em
centenas, e então milhares, brigadas suicidas, usando bandanas vermelhas ao
redor de seus pescoços e chaves de plástico embaixo, para abrir a porta do
paraíso.
Recite as palavras sagradas.
Puxe suas roupas apertadamente em si próprio.
Fixe o olhar.
Carregue sua alma em sua mão.
Ele acreditava que poderia ver direto dentro das torres
ainda que suas costas estivessem para elas. Ele não sabia a localização da
aeronave mas acreditava que conseguia ver pela parte de trás da cabeça e
através do aço e alumínio da aeronave e para dentro das longas silhuetas, os
contornos, as formas, as figuras se aproximando, as coisas materiais.
Os ancenstrais pios tinham puxado suas roupas apertadamente
em si próprios antes da batalha. Eles eram aqueles que nomearam o caminho. Como
poderia qualquer morte ser melhor.
Cada pecado de sua vida é perdoado nos segundos que chegavam.
Não há nada entre você e vida eterna nos segundos que chegavam.
Você está desejando a morte e agora está aqui nos segundos
que chegavam.
Ele começou a vibrar. Ele não tinha certeza se era o mover
do avião ou ele mesmo. Ele balançava no assento, dolorido. Ele ouviu sons de
algum lugar na cabine. A dor estava pior agora. Ele ouviu vozes, gritos
excitados da cabine ou do cockpit, ele não tinha certeza. Alguma coisa caiu da
bancada na galera.
Ele apertou seu cinto de segurança.
A garrafa caiu da bancada na galera, no outro lado do
corredor, e assistiu a ela rolar para este lado e para o outro, uma garrafa
d’água, vazia, fazendo um arco em uma direção e rolando de volta no outro, e
ele assistu a ela girar mais rápido e escorregar pelo chão um instante antes do
avião acertar a torre, calor, depois combustível, depois fogo, e uma onda de
explosão passou pela estrutura que mandou Keith Neudecker para fora de sua
cadeira e para uma parede. Ele se viu andando para dentro de uma parede. Ele
não derrubou o telefone até ele acertar a parede. O chão começou a deslizar
embaixo dele e ele perdeu seu equilíbrio e escorregando pela parede até o chão.
Ele viu a cadeira quicar pelo corredor em câmera lenta. Ele
pensou que viu o teto começar a ondular, erguer e ondular. Ele botou seus
braços por cima de sua cabeça e sentou joelhos pra cima, rosto enfiado entre
eles. Ele estava ciente de vasto movimento e outras coisas, menores, não
vistas, objetos deslizando e quicando, sons que não eram uma coisa ou outra mas
apenas som, uma alteração no arranjo básico de partes e elementos.
O movimento era abaixo dele e então por toda sua volta,
imenso, algo inimaginável. Era
a torre guinando. Ele entendeu isto agora. A torre começou um longo
balançar para a esquerda e ele ergueu sua cabeça. Ele tirou a cabeça dos
joelhos para ouvir. Ele tentou ficar completamente parado e tentou respirar e
tentou ouvir. Lá depois da porta do escritório ele viu um homem com seus
joelhos na primeira onda pálida de fumaça e poeira, uma figura profundamente
concentrada, cabeça erguida, paletó desvestido pela metade, pendurado por um
ombro.
Em tempo a torre parou de se inclinar. A inclinação parecia
eterna e impossível e ele sentou e escutou e depois de um tempo a torre começou
a lentamente deslizar de volta. Ele não sabia onde estava o telefone mas ele
podia ouvir a voz do outro lado, ainda ali, em algum lugar. Ele viu o teto
começar a ondular. O fedor de algo familiar estava em toda parte mas ele não
sabia o que era.
Quando a torre finalmente balançou de volta para a vertical
ele se empurrou para fora do chão e moveu até a porta. O teto na parte distante
do hall gemeu e abriu. O estresse era audível e então ele abriu, objetos
caindo, painéis e paredes de gesso. Pó de gesso encheu a área e havia vozes pelo
hall. Ele perdia coisas na medida em que aconteciam. Ele sentia as coisas vindo
e saindo.
O homem ainda estava lá, ajoelhado na porta do escritório
oposto, pensando muito a respeito de alguma coisa, sangue aparecendo pela sua
camisa. Ele era um cliente ou um advogado de consultoria e Keith o conhecia
ligeiramente e eles trocaram um olhar. Impossível dizer o que significava, este
olhar. Havia pessoas chamando
nomes pelo hall. Ele tirou seu paletó da porta. Ele esticou a mão atrás
da porta e tirou o paletó do gancho, sem saber por que ele estava fazendo isso
mas não se sentindo idiota por fazê-lo, esquecendo-se de se sentir idiota.
Ele desceu pelo hall, vestindo o paletó. Havia pessoas se
movendo na direção das saídas, na outra direção, movendo, tossindo, ajudando
outros. Eles pisavam por cima de detritos, rostos mostrando urgência
resoluta. Este era o conhecimento em
todo rosto, a distância que eles tinham de cobrir até o nível da rua. Eles
falavam a ele, um ou dois, e ele balançava a cabeça de volta ou não. Eles
falavam e olhavam. Ele era o cara que achava que precisava do paletó, o cara
indo para a direção errada.
O fedor era combustível e ele conheceu isto agora, escorrendo
dos andares acima. Ele chegou ao escritório de Rumsey no final do hall. Ele tinha
que escalar para dentro do escritório. Ele escalou por cima de cadeiras e
livros atirados e um arquivo tombado. Ele viu moldura descoberta, barras de
treliça, onde estivera o teto. A caneca de café de Rumsey estava estilhaçada em
sua mão. Ele ainda segurava um fragmento da caneca, seu dedo passando pelo
anel.
Só que não parecia o Rumsey. Ele sentava em sua cadeira,
cabeça para o lado. Ele tinha sido atingido por alguma coisa grande e dura
quando o teto cedeu ou até antes, no primeiro espasmo. Seu rosto estava pressionado
contra o ombro, algum sangue, não muito.
Keith falou com ele.
Ele agachou ao lado e tomou seu braço e olhou para o homem,
falando com ele. Alguma coisa veio gotejando do canto da boca de Rumsey, feito
bile. Como que é bile? Ele viu a marca em sua cabeça, um entalhe, uma marca de
goiva, funda, expondo tecido cru e nervo.
O escritório era pequeno e improvisado, um cubículo enfiado
em um canto, com vista limitada para o céu da manhã. Ele sentiu os mortos ali
perto. Ele teve esta sensação, na poeira suspensa.
Ele assistiu ao homem respirar. Ele estava respirando. Ele parecia alguém
paralizado para o resto da vida, nascido assim, cabeça torcida em seu ombro,
vivendo numa cadeira noite e dia.
Havia fogo ali em cima em algum lugar, combustível queimando,
fumaça soprada para fora de um duto de ventilação, e então fumaça fora da
janela, rastejando prédio abaixo.
Ele desdobrou o dedo indicador de Rumsey e retirou a caneca
quebrada.
Ele se botou de pé e olhou para ele. Ele falou com ele. Ele
disse a ele que ele não poderia empurrá-lo pela cadeira, rodinhas ou não,
porque havia detritos por toda parte, ele falava rápido, detritos bloqueando
porta e o hall, falando rapidamente para que conseguisse pensar também assim.
Coisas começaram a cair, uma coisa e depois outra, coisas
sozinhas primeiro, descendo da abertura do teto, e ele tentou levantar Rumsey
de sua cadeira. E então algo lá fora, passando pela janela. Algo passou pela
janela, ele viu. Primeiro passou e não estava mais lá e então ele viu e teve
que ficar por um momento olhando para fora, para o nada, segurando Rumsey por
baixo do braço.
Ele não conseguia parar de ver aquilo, vinte pés de
distância, um instante de alguma coisa de lado, passando pela janela, camiseta
branca, mão erguida, caindo antes de ele conseguir ver. Detritos em cachos
vinham descendo agora. Havia ecos soando pelos andares e arames estalando
diante de seu rosto e pó branco por toda a parte. Ele permaneceu em pé, segurando Rumsey. A
partição de vidro estilhaçou. Algo desceu e houve um barulho e o vidro
arrepiou e quebrou e então a parede cedeu atrás dele.
Tomou algum tempo para que ele pudesse se empurrar para cima
e para fora. Seu rosto tinha a sensação de cem incêndios pontilhados em seu
rosto e era difícil respirar. Ele encontrou Rumsey na fumaça e poeira, rosto
pra baixo nos cascalhos e sangrando muito. Ele tentou erguê-lo e virá-lo e
percebeu que ele não conseguia usar sua mão esquerda mas conseguia virá-lo
parcialmente.
Ele queria erguê-lo até seu ombro, usando seu braço para
ajudar a guiar a parte superior do corpo enquanto ele agarrava pelo cinto com
sua mão direita e tentava apanhar e levantar.
Ele começou a levantar, seu rosto quente com o sangue na
camiseta de Rumsey, sangue e poeira. O homem pulou em sua mão. Havia um ruído em
sua garganda, abrupto, meio segundo, meio suspiro, e então sangue de algum
lugar, flutuando, e Keith virou para trás, mão ainda agarrando o cinto do
homem. Ele esperou, tentando
respirar. Ele olhou para Rumsey, que tinha caído para longe dele, parte
superior do corpo frouxa, rosto quase ausente. O negócio inteiro de ser Rumsey
estava em farrapos agora. Keith segurou apertando a fivela do cinto. Ele ficou
ali e olhou para ele e o homem abriu os olhos e morreu.
Foi então que ele se perguntou o que que estava acontecendo
aqui.
Papel voava pelo corredor, soando feito chocalhos em um
vento que parecia vir de cima.
Havia mortos, indistintamente vistos, nos escritórios em
ambos lados.
Ele escalou por cima de uma parede tombada e seguiu seu
caminho lentamente na direção das vozes.
No vão da escadaria, no quase escuro, uma mulher carregava
um pequeno triciclo apertado em seu peito, uma coisa para uma criança de três
anos, guidão emoldurando suas costelas.
Eles desciam andando, milhares, e ele estava lá com eles. Ele
andava em um longo sono, um degrau e depois o próximo.
Havia água correndo em algum lugar e vozes em uma distância
estranha, vindo de outro vão de escadaria ou de elevador, lá fora no escuro em
algum lugar.
Estava quente e tumultuado e a dor em seu rosto parecia
encolher sua cabeça. Ele pensou que seus olhos e boca afundavam para dentro de
sua pele.
As coisas voltavam a ele em visões nebulosas, como metade de
um globo ocular olhando fixamente. Estes
eram momentos que ele perdia na medida em que aconteciam e ele tinha que parar
de andar para que conseguisse parar de vê-los. Ele ficou olhando para o nada. A
mulher com o triciclo, ao seu lado, falou com ele, passando.
Ele sentiu o cheiro de algo terrível e entendeu que era ele,
coisas grudadas a sua pele, partículas de pó, fumaça, algum tipo de areia
oleosa em sua cara e mãos misturando com a poça corpórea, feito cola, com o
sangue e saliva e suor frio, era ele mesmo de que ele sentia o cheiro, e
Rumsey.
O tamanho daquilo, a pura dimensão física, e ele se viu
naquilo, a massa e escala, o jeito que a coisa balançava, o lento e fantasmal
inclinar.
Alguém tomou seu braço e o guiou para frente por alguns
degraus e então ele andou por si só, em seu sono, e por um instante ele viu de
novo, passando pela janela, e desta vez ele penseou que era Rumsey. Ele
confundiu aquilo com Rumsey, o homem caindo de lado, braço esticado e para
cima, como que apontado para cima, tipo por que estou aqui em vez de ali.
Ele tinha de esperar às vezes, longos momentos travados, e
ele olhava direto em sua frente. Quando a fila movia de novo ele andava um
degrau pra baixo e depois outro. Eles conversavam com ele várias vezes, pessoas
diferentes, e quando isto aconteceu ele fechava os olhos, talvez porque queria
dizer que ele não precisava responder.
Havia um homem no patamar adiante, velho, pequeno, sentado na sombra, joelhos erguidos,
descansando. Algumas pessoas falavam e ele balançava a cabeça ok, ele acenando
com a mão e balançando a cabeça
Havia um sapato de mulher ali perto, de ponta cabeça. Havia
uma pasta de lado e o homem tinha que se inclinar para alcançá-la. Ele estendeu
a mão e a empurrou com algum esforço na direção da fila que avançava.
Ele disse “eu não sei o que eu deveria fazer com isto. Ela
caiu e deixou ali”
Pessoas não escutavam isto ou não retinham isto ou não
queriam e moviam adiante, Keith moveu adiante, a fila começando a chegar a uma
área de alguma luz.
Não parecia eterno a ele, a passagem descendo. Ele não tinha
uma sensação de marcha ou ritmo. Havia uma listra de brilho na escada que ele
não tinha visto antes e alguém rezando lá atrás em algum lugar da fila, em
espanhol.
Um homem apareceu, movendo rapidamente, usando um capacete
de segurança, e eles abriram um espaço, e depois apareceram bombeiros, em
massa, e eles abriram um espaço.
Rumsey era o que estava na cadeira. Ele entedeu isto agora.
Eles tinham arrumado para ele descer com a cadeira e eles iam encontrá-lo e
trazê-lo para baixo, e outros.
Havia vozes em cima atrás de si, lá nas escadas, um e depois
outro em quase eco, vozes em fuga, vozes em canto nos ritmos de fala natural.
Isto aqui desce.
Isto aqui desce.
Vá passando para baixo.
Ele parou de novo, segunda vez ou terceira, e pessoas
empurravam ao redor dele e olhavam para ele e diziam para ele se mover. Uma
mulher tomou seu braço para ajudá-lo e ele não se moveu e ela continuou
Vá passando para baixo.
Isto aqui desce.
Isto aqui desce.
A pasta desceu dando a volta pelo vão da escada, mão a mão,
alguém deixou isto, alguém esqueceu isto, isto aqui desce, e ele ficou olhando
direto para frente quando a pasta chegou até ele, chegando a sua mão direita
pelo seu corpo para pegá-la, sem expressão, e começou a descer pela escada de
novo.
Havia longas esperas e outras não tão longas e no tempo que
eles eram guiados descendo ao nível térreo, embaixo do Plaza, eles se moveram
passando por lojas vazias, lojas trancadas, e eles estavam correndo agora,
alguns deles, com água despejando de algum lugar. Eles saíram na rua, olhando
para trás, ambas torres queimando, e logo eles ouviram um alto tremor
percussivo e viram fumaça descendo do topo de uma torre, crescendo para fora e para
baixo, metodicamente, andar por andar, a torre caindo, a torre sul mergulhando
para dentro da fumaça e eles estavam correndo de novo.
A explosão de vento mandou as pessoas para o chão. O trovoar
de fumaça e cinzas veio movendo na direção deles. A luz drenou os vivos para
longe, o dia claro desaparecido. Eles correram e caíram e tentaram se levantar,
homens de cabeças com toalhas, mulheres cegadas por detritos, uma mulher
chamando o nome de alguém. A única luz era agora vestigial, a luz daquilo que
vem depois, carregado no resíduo de matéria esmagada, nas ruínas de cinza
daquilo que era variado e humano, pairando no ar acima.
Ele deu um passo e depois o outro, fumaça soprando por cima
dele. Ele sentiu o cascalho nas suas solas, e havia movimentação por toda
parte, pessoas correndo, coisas passando voando. Ele caminhou diante da placa
de Easy Park, o Especial de Café da Manhã e o Three Suits Cheap, e eles
passaram correndo, perdendo sapatos e dinheiro. Ele viu uma mulher com a mão
erguida, como que correndo para pegar um ônibus.
Ele passou pela fileira de caminhões de bombeiro e eles
agora estavam vazios, faróis brilhando. Ele não conseguia se encontrar nas
coisas que via e escutava. Dois homens correram com uma maca, alguém com o
rosto pra baixo, fumaça vazando de seu cabelo e roupas. Ele assistiu a eles se
mover para a distância aturdida. Era lá onde tudo estava, ao redor dele,
despencando, placas de rua, pessoas, coisas que ele não conseguia nomear.
Então ele viu uma camisa descer do céu. Ele andou e olhou
ela caindo, braços acenando como nada nesta vida.
domingo, 2 de março de 2014
Rascunho de tradução do primeiro capítulo do Falling Man, do Don Delillo
Comprei o livro porque estava barato, uma cópia usada numa livraria quando fui lá pra nova iorque. Os da Egan e da Ozick que eu estava lendo estavam bem chatos (The keep e The cannibal galaxy, não recomendo nenhum dos dois; ótimas escritoras, mas que pelo visto nem sempre acertam), resolvi abrir a sacola de compras e dar uma lida no primeiro parágrafo. Essas páginas de abertura (e conclusão, traduzi também o fim, vou postar depois) estão entre as melhores que já li. Este post vai dedicado para quem acha que a literatura sempre perde nas tentativas de correr atrás da realidade.
---
PARTE UM
BILL LAWTON
1
Não era mais uma rua e sim um mundo, um tempo e espaço de
cinzas caindo e quase noite. Ele caminhava norte atravessando escombros e lama
e havia pessoas passando correndo segurando toalhas em seus rostos ou paletós por
cima de suas cabeças. Eles tinham lenços pressionados contra suas bocas. Eles
tinham sapatos em suas mãos, uma mulher com um sapato em cada mão, passando
correndo por ele. Eles corriam e caiam, alguns deles, confusos e desajeitados,
com detritos caindo ao redor deles, e algumas pessoas tomavam abrigo embaixo de
carros.
O rugir estava ainda no ar, o estrondo despencante da queda.
Este era o mundo agora. Fumaça e cinzas vinham rolando rua abaixo e contornando
esquinas, rebentando pelas esquinas, marés sísmicas de fumaça, com papel de
escritório aparecendo e sumindo, folhas padrão com pontilhado de corte,
roçando, chicoteando, coisas de outro mundo na mortalha da manhã.
Ele vestia um terno e carregava uma pasta. Havia vidro em
seu cabelo e rosto, cápsulas marmoreadas de sangue e luz. Ele passou por uma
placa de Promoção de Café da Manhã e eles passaram correndo, policiais da
cidade e seguranças correndo, mãos pressionadas contra as coronhas para manter
as armas firmes.
As coisas dentro estavam distantes e imóveis, onde ele
deveria estar. Aconteceu por toda parte ao redor dele, um carro meio enterrado
em destroços, janelas esmagadas e barulhos saindo, vozes de rádio arranhando as
ruínas. Ele viu pessoas vertendo água enquanto corriam, roupas e corpos ensopados
por sistemas anti-incêndio. Havia sapatos descartados na rua, bolsas e laptops,
um homem sentado na calçada tossindo sangue. Copos de papel passavam quicando estranhamente.
O mundo era isto também, figuras em janelas trezentos metros
acima, caindo para dentro de espaço vazio, e o fedor de incêndio de
combustível, e o rasgar estável de sirenes no ar. O barulho estava em toda
parte em que corriam, som estratificado acumulando ao redor deles, e ele
caminhou para longe dele e para dentro dele ao mesmo tempo.
Havia outra coisa então, fora de tudo isto, não pertencendo a
isto, acima. Ele assitiu aquilo descer. Uma camisa desceu pra fora da fumaça
alta, uma camisa erguida e deslizante na luz escassa e então caindo denovo, pra
baixo em direção ao rio.
Eles correram e então eles pararam, alguns deles, parados
ali oscilando, tentando puxar fôlego do ar queimante, e os gritos espasmódicos
de incredulidade, xingamentos e berros perdidos, e o papel juntou-se no ar,
contratos, currículos sendo assoprados, nacos intactos de negócios, rápidos no
vento.
Ele continuou andando. Alguns que corriam haviam parado e
outros desviando para ruas secundárias. Alguns caminhavam de costas, olhando
para o cerne daquilo, todas aquelas vidas se contorcendo lá atrás, e coisas
continuavam caindo, objetos incendiados trilhando linhas de fogo.
Ele viu duas mulheres aos prantos em sua marcha reversa,
olhando através dele, em shorts de corrida, rostos em colapso.
Ele viu membros do grupo de taichi do parque ali próximo, em
pé com mãos estendidas aproximadamente na altura do peito, cotovelos dobrados,
como se tudo isto, eles inclusos, poderiam ser colocados em um estado de
suspensão.
Alguém saiu de um restaurante e tentou passar para ele uma
garrafa d’água. Era uma mulher usando uma máscara de poeira e um boné de
baseball e ela tirou a garrafa e girou a tampa e empurrou-a de novo para ele.
Ele desceu sua pasta ao chão para pegá-la, quase ciente de que ele não estava
usando seu braço direito, que ele teve que descer a pasta antes de poder pegar
a garrafa. Três vans da polícia chegaram desviando para dentro da rua e
correram para o centro da cidade, sirenes soando. Ele fechou seus olhos e
bebeu, sentindo a água passar para dentro de seu corpo levando poeira e fuligem
junto com ela. Ela estava olhando para ele. Ela disse uma coisa que ele não
escutou e devolveu a garrafa e pegou a pasta. Havia um resquício de gosto de
sangue no gole d’água.
Ele começou a andar de novo. Um carrinho de supermercado
estava erguido e vazio. Havia uma mulher atrás do carrinho, olhando pra ele,
com fita de isolamento policial enrolada ao redor de sua cara e face, fita
amarela pedindo distância que marca os limites de uma cena de crime. Os olhos
dela eram ondulações finas e brancas na máscara clara e ela apertava a barra do
carrinho e ficava ali em pé, olhando para dentro da fumaça.
Em tempo ele ouviu o som da segunda queda. Ele cruzou a
Canal Street e começou a ver coisas, de alguma maneira, diferentemente. As
coisas não pareciam carregadas nas formas normais, a rua de pedras, os prédios
de ferro fundido. Havia algo criticamente ausente das coisas ao redor dele.
Elas estavam inacabadas, seja lá o que isto queira dizer. Elas não eram vistas,
seja lá o que isto queira dizer, janelas de lojas, plataformas de carregamento,
paredes pintadas a spray. Talvez seja assim a aparência das coisas quando não
há ninguém para vê-las.
Ele ouviu o som da segunda queda, ou sentiu-a no ar trêmulo,
a torre norte caindo, o temor macio de vozes na distância. Era ele caindo, a torre
norte.
O céu estava mais claro aqui e ele conseguia respirar com
mais facilidade. Havia outros atrás dele, milhares, enchendo a distância média,
uma massa em quase formação, pessoas caminhando para fora da fumaça. Ele
continuou até ter de parar. Atingiu ele rapidamente, o conhecimento que ele não
podia ir adiante.
Ele tentou dizer a si mesmo que ele estava vivo mas a ideia
era obscura demais para se firmar. Não havia taxis ou trânsito de qualquer tipo
e então uma velha caminhonete apareceu, Electrical Contractor, Long Island
City, que encostou e o motorista se inclinou na direção da janela do lado do
passageiro e examinou o que viu, um homem escamado em cinzas, em matéria
pulverizada, e perguntou a ele para onde ele queria ir. Não foi até ele entrar
na caminhonete e fechar a porta que ele entendeu para onde ele estava indo todo
esse tempo.
domingo, 23 de fevereiro de 2014
A respeito do panorama sobre literatura contemporânea publicado pela Folha
Pouco tempo atrás eu teria lido com bastante interesse esta enquete feita pela Folha sobre literatura brasileira contemporânea. Para quem tá com preguiça, como eu, mas talvez queria um pouco não estar com preguiça, aqui vai um resumo que acabei de inventar (sem ter lido) que muito provavelmente se aplica ao que foi publicado:
1) Vai ter o velho que fala que na época em que ele não era velho era tudo bem melhor, nossa. Anos cinquenta, putz, Guimarães e Clarice publicando, era outra coisa - esquecendo completamente que não eram apenas Guimarães e a Clarice publicando, que as obras de valor são sempre minoria numérica; grande novidade: autores esquecidos são tão esquecidos que as pessoas esquecem que esqueceram.
2) Vai ter o não-tão velho que admira o velho (ou algum colega do velho) que realmente, putz, no outro dia eu li um romance e foi ruim, nunca mais, me deixa aqui com meu Graciliano (só a parte boa, por favor, não me venha com esses Caetés aí não)
3) O sujeito que diz que há grande diversidade no panorama atual... como se na literatura moderna isto não fosse característica de praticamente qualquer sistema intelectual minimamente saudável (não confundindo saudável com robusto, claro). Faulkner e Hemingway publicavam contemporâneos um ao outro, Kurt Vonnegut e John Barth, Raymond Carver e as primeiras obras de destaque do Cormac McCarthy... Este não está errado, mas saímos da leitura de sua opinião sabendo o mesmo que quando entramos.
4) O que gosta de tal assunto e reclama que as pessoas não escrevem sobre o assunto que ele gosta (cadê o ativismo, cadê a experimentação, cadê qualquer coisa), ou escrevem pouco sobre aquele assunto, ou escrevem mal sobre aquele assunto. Quando na verdade não é o assunto que tem pré-existência a ser posteriormente preenchida pelo autor, e sim o assunto que ganha formato específico (pautado pelo tratamento literário aplicado) quando escolhido pelo autor.(Até o velho romance-sobre-futebol que sempre "estava faltando" ao mesmo tempo encontra-e-não-encontra seu cumprimento no livro O Drible, do Sérgio Rodrigues, que é bem mais sobre ressentimento do que sobre futebol: quem diria que o "passatempo nacional" encontraria tamanha expressão literária em um dos textos mais negativos da nossa literatura?).
O problema estrutural desses panoramas é bem simples: o leitor de Literatura (este panda praticamente extinto) não mantém um relacionamento com nenhum panorama, e sim com obras específicas, quando muito com determinados autores. Gostar de um livro lançado em 1987 não quer dizer nada a respeito de outros livros de 1987. Talvez até seja possível encontrar algumas similaridades dependendo do espírito da época (claro que ignorando as obras que não se encaixam), mas a diferença de qualidade de uma tentativa em relação a outra sempre vai ser enorme, e sempre vai ser o principal. O interesse por panoramas é apenas de acadêmicos e especialistas: sei porque já tentei ser um, já li um monte desses a respeito do período que estudei no meu mestrado, são textos sempre infatigavelmente idênticos, inevitavelmente vagos e prolixos, uma listagem comentada de autores que poderia se resumir muito bem a apenas a listagem deixando para o leitor descobrir de quem ele gosta e quem ele vai ignorar. Não estou falando da qualidade específica do panorama publicado pela folha, só estou ressaltando que os textos desse gênero são bem menos úteis do que parecem. Existe sim um sistema literário (passei páginas demais da minha dissertação argumentando isto) que exerce sua influência na publicação e até mesmo na recepção das obras: mas se a obra de destaque ganha seu destaque justamente na atipicidade, para que tanto interesse em generalizações?
--
Outro problema, claro, ao falar de literatura contemporânea é que a ausência (estruturalmente onipresente) de um cânone dificulta discussões mais afundo. Se falamos sobre Dom Casmurro, podemos entrar em mais detalhes pois imagina-se que boa parte da plateia (do mundo dos leitores de literatura, claro) tenha lido o livro. Se falamos sobre, sei lá, Rubens Figueiredo, a quantidade de detalhes que se pode adentrar sem alienar a parcela de não-leitores é bem menor. Posso falar com mais tranquilidade do enterro do Escobar narrado por Bentinho, mas não tanto das dez-ou-vinte páginas bizarras em que o narrador do Passageiro do Fim do Dia fica falando sobre um clone de GTA que um rapaz joga numa lanhouse.
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Lição do post: não leia o contemporâneo para ter uma ideia do que está acontecendo. Para se aproximar minimamente disso será necessário ler uma quantidade irrazoável de obras, e necessariamente a maioria será bem ruim (já estive nesta onda, e até entrei nela no modo vintage quando fui ler a produção não-canonizada da literatura brasileira dos anos 70). De qualquer forma quem vai entender tudo bem melhor do que você conseguiria vai vir depois de tudo isto que está acontecendo, isto é, depois de você. Leia o contemporâneo se te parece que aquele livro específico pode ser uma boa leitura.
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Lição do post: não leia o contemporâneo para ter uma ideia do que está acontecendo. Para se aproximar minimamente disso será necessário ler uma quantidade irrazoável de obras, e necessariamente a maioria será bem ruim (já estive nesta onda, e até entrei nela no modo vintage quando fui ler a produção não-canonizada da literatura brasileira dos anos 70). De qualquer forma quem vai entender tudo bem melhor do que você conseguiria vai vir depois de tudo isto que está acontecendo, isto é, depois de você. Leia o contemporâneo se te parece que aquele livro específico pode ser uma boa leitura.
sábado, 22 de fevereiro de 2014
Mais traduções que venho fazendo para não ficar fazendo meu romance - On being blue
Parágrafo final do "on Being Blue" do William Gass
(a propósito, o azul no livro é meio que metáfora para o literário, mas a argumentação do livro é bem longe de ser organizada de uma forma a ser possível delinear os detalhes do que ele está dizendo. É um ensaio meio que em fluxo de consciência)
(a propósito, o azul no livro é meio que metáfora para o literário, mas a argumentação do livro é bem longe de ser organizada de uma forma a ser possível delinear os detalhes do que ele está dizendo. É um ensaio meio que em fluxo de consciência)
Então ao escritor desgraçado
eu gostaria de dizer que existe um corpo cujo pedido seu de carícia nunca é
vulgar, nunca é impuro, inconveniente ou impolido; pois você deve se lembrar de
que suas atenções não se destinam apenas a celebrar beleza como também para criá-la;
que é seu um amor que traz seu próprio parto, da maneira como Platão declarou,
e que você deve portanto desistir das coisas azuis desse mundo em favor das
palavras que as dizem: lápis azuis, narizes azuis, filmes, azuis, leis, pernas
azuis e meias, a linguagem dos pássaros, abelhas, e flores da forma como são
cantadas por estivadores, aquela aparência plúmbea da pele quando afetada pelo
frio, contusão, doença, medo, cântico e reza, já que o dia pode começar mal, numa luz empapada que molha a alma antes da consciência conseguir quebrar de
forma que cada pensamento está umedecido como uma testa ansiosa, desejo não
centelha, e o pau matinal está mole...
consequentemente fale e louve, pois a queda do espírito, descendendo feito um
mergulhador na direção do chão do oceano, é marcada por uma escuridão
crescente, verde virando naval, então um espectro de tonalidades da espessura de um
fio de cabelo que aparece para pousar, entre peixes nevando e plantas pálidas feito
papel, em uma noite sem norte. E nossas linhas são longas embaixo d'água, largas e magricelas, curvando-se contra si próprias como as pernas de uma
aranha morrendo; nossas feições se afrouxam em melancolia, e o azul
que marca a mudança é pesado, espesso feito lodo... então grite e celebre antes que a sombra cubra a janela: sangue azul, azul em bolas, boinas, barbas,
casacos, colares, chips e queijo... enquanto há tempo e você é capaz, porque
quando azul tiver abandonado as bordas de seus objetos como se o mundo
tivesse sido branqueado dele por completo, quando o amplo olho azul se fechar para a
temporada, quando não há mais nada além da linguagem... penumbra aguada, oceano
azedo... não se pense um clero esvaziado de coro e cânticos... cante e conclame... a
despeito da dor de barriga e da solidão, a nova gordura acumulada e pele
descamante e bebedeira e fúria desamparada, a despeito de foras, choros,
segundas-feiras, folhas de papel como pratos sujos, o amanhã despencando na sua
direção feito um edifício, fique aguardando aquele momento miraculoso em
que em sua boca os dentes se transformam em dragões e você contra as
probabilidades faz o que Demóstenes fez no Egeu: forme com pedrinhas sílabas e
faça soar a rocha; assim avisado e encorajado, comandado, advertido, persista...
ainda que o colchão em que você se enluta seja entornado e aqueles cantos onde os rolos de moedinhas se abrem feito frestas para engoli-las, relógios se arrastam, e tendo tido talvez alguma chuva torrencial, ou fumaça de fábrica, um vento envelhecido e ar invernal,
e tudo é cinza.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
Só pro negócio não ficar inteiramente morto
Sobre a possibilidade da escrita oferecer algum alívio para o autor:
"Poetry is cathartic only for the unserious, for in front of the rush of expressive need stands the barrier of form, and when the hurdler's scissored legs and outstretched arms carry him over the bars, the limp in his life, the headache in his heart, the emptiness he's full of, are as absent as his street-shoes which will pinch and scrape his feet in all the old leathery ways once the race is over and he has to wlak through the front door of his future like a brushman with some feckless patter and a chintzy plastic prize"
(Ensaio "the doomed in their sinking", do livro The world within the word, do William Gass)
(Pelo que posto provavelmente passo a impressão de ser um fã maior o William Gass do que realmente sou. É que eu geralmente posto trechos incríveis e trechos incríveis é o que mais se encontra lendo a obra dele, só que a somatória do resto de maneira geral não mostra muita coisa surpreendente. É um mestre da estilística, sem dúvida, mas geralmente me surpreendo pela beleza da forma com a qual ele expressa as ideias em vez das ideias em si expressadas. Talvez sirva para mostrar que o elogio de "altamente citável" (de ter vários olha-sós em sua obra) para um escritor talvez seja superestimado; o Coetzee, por exemplo, raramente me aparece com algum trecho de tirar o fôlego e é escritor bem maior que o Gass)
Enfim, aqui vai uma tentativazinha de traduzir o parágrafo acima. O fim não ficou ótimo, mas não consegui criar nada melhor:
"Poesia é catártica apenas para os que não são sérios, pois diante do afã da necessidade de expressão jaz a barreira da forma, e quando o saltador de obstáculos com suas pernas em movimentos de tesoura e braços esticados pro ar consegue se carregar por cima das barras, o manquejar de sua vida, a enxaqueca de seu coração, o vazio do qual ele está cheio, estão tão ausentes quanto seus sapatos de rua que vão beliscar e arranhar seus pés em todas suas antigas maneiras uma vez que a corrida acaba e ele tem que atravessar a pé a porta da frente de seu futuro feito um pintor com algum tagarelar inútil e uma porcaria de prêmio de plástico"
quarta-feira, 1 de janeiro de 2014
Lobo Antunes
Resolvi iniciar 2014 (não sou imune a essas coisas) lendo Lobo Antunes, autor que simplesmente despertou minha sensibilidade para a estilística (esta fissura que hoje me domina, ainda que com objetivos diferentes do que a elegância) quando o li pela primeira vez aos dezenove anos. Ou vinte, não tenho certeza. Nem sempre tenho a energia (ou não-preguiça) de acompanhar sua prosa saltitante-entre-cenas, mas aparecendo do nada coisas como
"e as cortinas a dilatarem a noite dado que é através dela que as sombras respiram"
certamente fazem valer o esforço. Ainda estou no início, mas no meio do segundo capítulo finalmente pude mais ou menos apreender a forma de organizar a exposição de mundo, personagem e acontecimentos que ele usa nos romances Manual dos inquisidores adiante (a partir do qual ele usa aquele estilo de palavras meio que jogadas na página): é como se as coisas fossem aparecendo meio que num tag cloud ( http://en.wikipedia.org/wiki/Tag_cloud ), sem esquema de tamanho diferenciado, em que o leitor é forçado a montar o mundo em sua cabeça não por uma ordenação razoável dos fatos e sim ir catando estilhaços de algum acidente que aconteceu antes dele chegar. Na maioria dos romances é possível fazer um tag cloud emotivo (sei lá, Machado de Assis seria burguesia - ironia - ceticismo - rio de janeiro, assim adiante, não vão me cobrar isto pelamor), no caso do Lobo Antunes são os próprios eventos que são justapostos fora de um encadeamento cronológico, ou cronológico-remontado (in media res e tal). O cronológico está mais para liquidificado, nos livros dele.
Não tenho leitura suficiente da ampla literatura de fluxo-de-consciência para poder falar a que ponto isto é coisa dele ou não, mas é verdade também que acho o Ser Original em sua maior parte uma qualidade bastante superestimada em muitas empreitadas artísticas.
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Listinhas de melhor do ano eu sempre fui incapaz de fazer, porque nunca me ative muito a ler um livro por ter sido lançado muito recentemente. Acontece de uma obra ou outra ser lida assim que aparece, mas acho que nem li 5 livros primeiramente impressos em 2013 para poder fazer uma lista 2013 direito. E na verdade não sei também se conseguiria fazer uma lista de livros lidos em 2013 que eu achei memoráveis sem ter que fazer um esforço de memória bem grande (a coisa fica meio embaralhada dentro da minha cabeça) o que acaba por minar a noção de leituras memoráveis, não é mesmo. Sei que ficou muito na minha cabeça o Civilwarland In Bad Decline, do George Saunders, uma mistura de Vonnegut com DFW que conseguiu me impressionar com a sagacidade da sátira e me comover com uma humanidade que irrompe no meio dos estereótipos idiotizados (o pessoal que literariamente estetiza idiotia aqui pelo Brasil poderia bem ler o Saunders), me rendendo vários momentos de erguer-a-cabeça-durante-a-leitura. Foi o suficiente para ter comprado toda a obra em paperback disponível dele. Só que depois fui ler o Pastorlalia e achei uma leitura talvez até abaixo do razoável justamente por ser excessivamente parecido com o Civilwarland, reação minha que me deixou meio perplexo porque eu já imaginava a esta altura (depois de tanto esforço gasto com esta coisa de literatura) já saber mais ou menos o que eu gostava. Enfim, lembrando aqui neste momento sei dizer que este ano eu li The Recognitions, do Gaddis, que de fato é um grande livro (não só um livro grande), mas a fissura com autenticidade não me comove grandemente, e tentei duas vezes (em sequência) começar o Gravity's Rainbow, só que o esquema personagens cardboard cutout feito pelo Pynchon me impediu de seguir muito adiante. E o Middle C do Gass comprovou minha tese que não se escreve grandes obras depois dos oitenta anos (apesar de ótimos trechos aqui e ali).
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Listinhas de melhor do ano eu sempre fui incapaz de fazer, porque nunca me ative muito a ler um livro por ter sido lançado muito recentemente. Acontece de uma obra ou outra ser lida assim que aparece, mas acho que nem li 5 livros primeiramente impressos em 2013 para poder fazer uma lista 2013 direito. E na verdade não sei também se conseguiria fazer uma lista de livros lidos em 2013 que eu achei memoráveis sem ter que fazer um esforço de memória bem grande (a coisa fica meio embaralhada dentro da minha cabeça) o que acaba por minar a noção de leituras memoráveis, não é mesmo. Sei que ficou muito na minha cabeça o Civilwarland In Bad Decline, do George Saunders, uma mistura de Vonnegut com DFW que conseguiu me impressionar com a sagacidade da sátira e me comover com uma humanidade que irrompe no meio dos estereótipos idiotizados (o pessoal que literariamente estetiza idiotia aqui pelo Brasil poderia bem ler o Saunders), me rendendo vários momentos de erguer-a-cabeça-durante-a-leitura. Foi o suficiente para ter comprado toda a obra em paperback disponível dele. Só que depois fui ler o Pastorlalia e achei uma leitura talvez até abaixo do razoável justamente por ser excessivamente parecido com o Civilwarland, reação minha que me deixou meio perplexo porque eu já imaginava a esta altura (depois de tanto esforço gasto com esta coisa de literatura) já saber mais ou menos o que eu gostava. Enfim, lembrando aqui neste momento sei dizer que este ano eu li The Recognitions, do Gaddis, que de fato é um grande livro (não só um livro grande), mas a fissura com autenticidade não me comove grandemente, e tentei duas vezes (em sequência) começar o Gravity's Rainbow, só que o esquema personagens cardboard cutout feito pelo Pynchon me impediu de seguir muito adiante. E o Middle C do Gass comprovou minha tese que não se escreve grandes obras depois dos oitenta anos (apesar de ótimos trechos aqui e ali).
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