domingo, 25 de novembro de 2012

Barba enganada?

O post de hoje tem origem neste texto: http://etudeslusophonesparis4.blogspot.fr/2012/11/barbas-pouco-confiaveis.html .

Eu gostei do romance e a Elvira não gostou. Parece que a prática cabível seria de dar os ombros e ignorar a existência ou qualquer validade do texto ou tentar escrever uma resposta furiosa-nas-entrelinhas dos porquês ela estaria errada. Afinal, o campo literário seria feito de disputas, não? É, não sei se acredito tanto nisto, ou pelo menos que eu teria interesse em participar desta maneira. O texto é bem escrito, bem argumentado, cita as coisas com pertinência. Certamente tem bem mais propriedade do que as primeiras impressões que postei aqui umas semanas atrás.

Conversei brevemente com ela pelo twitter hoje, esbarrando toda hora no limite dos 140 caracteres, então resolvi fazer um post aqui, já que seus comentários inspiraram algumas ideias novas. 

(tenho como certeza de que os livros não terminam quando a gente lê a última página; quando a obra não é imediatamente esquecível, a gente vai relendo mentalmente, usando nossa memória faltosa, pelo resto da vida. Por isso é acho a resenha-de-lançamento é um desafio interessante porém bizarro, quase artificial, como um violonista tocando sem certas cordas)

(spoilers abstratos: não digo o que acontece no final da história mas vou esmiuçando o que vejo nas entrelinhas)

(Não vou escrever necessariamente para rebater o que a Elvira disse, este post é meio que escrito pensando em voz alta.)

Vi no twitter os primeiros comentários da Elvira sobre a leitura do livro do Galera e já imaginei que ela não fosse gostar. O livro de Galera não é um livro intelectual, crítico, como Elvira Vigna é (e não dou valor de "qualidade desejável" automático a essas duas palavras). É um livro de historinha, bem quadrado, e quem leu qualquer livro da Elvira sabe que não é bem este o caminho que ela trilha. 

Acho que um obstáculo central é a deliberada (ou aparentemente deliberada) falta de vontade de crítica em Galera. O que há é uma vontade de simplesmente ver, em vez de ver defeitos, construir, no lugar de refazer (melhor, diferente). Não é uma postura tão popular nos meios acadêmicos, ainda mais brasileiros. O intelectual no Brasil sempre se fez pela vontade de mudança diante da realidade tétrica do país (talvez um pouco menos hoje já que dá pra pobre comprar iPhone). Iniciativas intelectuais precisariam pautar por caminhos de mudança, ou crítica apontada e delineada, como quem sempre pergunta "o que há de errado?"

Vejo inteligência e sensibilidade na literatura de Galera, mas pelo que vejo ele não negocia com este repertório. Este caminho consagrado é um que conseguiria responder sem titubear a pergunta "no fim das contas, o que é que você está dizendo com este livro", e imagino o Galera meio perplexo se alguém chegasse a ele com esta pergunta. O livro simplesmente é.

Como exemplo deste aspecto de sua obra, acho que é possível citar a questão do sexo , sempre presente em seus livros mas sempre (pelo que consigo lembrar) sem qualquer libertação do cristianismo pudico. As mulheres no livro de Galera não aparecem gloriosamente libertas das amarras de casar virgens, ou de só fazer sexo por amor, depois de vários encontros "para ver se o cara é mesmo sério". Elas só trepam. Não são elogiadas como inteligentes /libertas/certas por fazer isto. Elas só fazem, com amor, sem amor, gozando e às vezes não. É algo que existe.

O método da obra dele é como se a todo tempo o autor falasse "olha".

(claro que não defendo que o autor é isento, imparcial, e "mostra a realidade como ela realmente é", etc etc, Não estou falando que é errado criticar as escolhas do livro ou o método do autor, só acho interessante notar o que há de diferente de muito que foi feito em literatura e crítica no Brasil)

É meio estranho lidar com um método estético como este. Posso citar como referência o reverenciado  (por mim e pelo Galera) Cormac McCarthy. Como dá pra perceber, gosto de falar de literatura, de tentar destrinchar um pouco o que acho de interessante, etc etc. Fico (se me deixarem)  horas e horas falando sobre o David Foster Wallace, sobre o Coetzee, sobre o Machado de Assis, sobre o Sérgio Sant'Anna. Com o Cormac McCarthy, só posso dizer que o cara é foda*. É outro cara que ressalta o que há de material, de plástico, (só que em um nível bem superior ao de Galera. Não que seja demérito a Galera estar aquém do Cormac, estaríamos (quase) todos fodidos se isto fosse um xingamento). Blood Meridian, por exemplo, é um livro sobre chacina contínua, genocídio mesmo, sangue e ossos e cadáveres, sem qualquer  dicção do medo ou do nojento, e em nenhum momento vemos qualquer crítica, explícita ou implícita, na narrativa. O All the Pretty Horses passa um tempão falando de coisas que decorreram da revolução mexicana, e o tratamento da coisa é quase como se tivesse sido um evento do clima.

* O palavroso DFW falando sobre o Cormac: http://www.salon.com/1999/04/12/wallace/ : "Don't even ask".

Não vejo o Galera como um seguidor/copiador do Cormac (existe um interesse pela oralidade bem diferente do laconismo quase bizarro dos diálogos do Cormac, por exemplo, e também uma vontade de registro de contemporaneidade e pequenas banalidades que não são as banalidades-levado-ao-grau-cósmico tudo-é-banal/genocídio-é-banal do Cormac. Quase tudo no Cormac é no grau cósmico), e sim como dois autores de sensibilidade produtiva semelhante. A obra de Galera é como uma foto (proposital, sim, autoral, sim, escolhida, sim) daquilo que ele viu. Uma foto muito bem escrita.

Mencionei este aspecto não-intelectual do livro para Elvira como indicativo de que ela não fosse gostar e ela falou que o novo livro do Lísias, sobre suicídio, não é um livro intelectual mas que ela gostou. A questão que vejo aí é que o livro de Lísias é pessoal, e o livro de Galera é impessoal. Quase tão impessoal quanto o Mãos de Cavalo (e tenho dificuldade em pensar em um livro mais frio na literatura brasileira, tirando os poemas do Cabral). O problema é que vejo como sendo os momentos mais pessoais do Barba como os piores, em que  se fala (em vez de se encenar) sobre o budismo, personagens conversando só para o Galera falar pro leitor a opinião dele (não muito comum, não desprovida de interesse, mas falada, meio achatada), e os mais distanciados, descrições de cenário e etc, da ação, como sendo os melhores. Como falei antes, um autor que me parece mais produtivo no caminho da especificação/especialização do que na vontade de abarcar todas as possibilidades presentes no texto.

(achei meio maldoso chamar a Jasmim de de "recepcionista de lojinha de turismo que fala sobre mito" , o que dá a ideia de algo meio artificial/incomum/idiossincrático (como me parece a prostituta que lê Nietzsche), quando o que vi foi uma mestranda que tira uma grana naquele servicinho turístico. Gostei da composição da personagem dela)

No final do texto da Elvira há um certo pedido/vontade de explicitação do processo ficcional, de abertura para o diálogo, e de fato isto não existe. 

Pelo que transitei e transito pelo mundo acadêmico/intelectual, vejo que esta é outra constante. O intelectual quer falar, quer discutir. Sim, isto é valoroso (e este post é uma vontade de conversa), mas de novo é uma ausência em Galera que me parece deliberada, proposital. Há uma ideia meio difundida no meio intelectual que diz que um livro hoje em dia que não explicita seus quês de artifício tem algo de mentiroso (sem qualquer conotação lúdica à palavra), que haveria aí uma vontade de objetividade, imparcialidade, superioridade implícita em procedimentos narrativos "naturais" ou "naturalizados". Que mostrar os andaimes é como que a coisa honesta a ser feita.

Será mesmo assim? A metalinguagem me parece interessante para enxergar os procedimentos e reconhecê-los como tal, mas seu encenamento artístico nem sempre é produtivo, não vejo que ela deve ser tomada como método contínuo. Os trechos sobre literatura no Cordilheira são os mais fracos do livro, a conversa do escultor em Cachalote eu achei um saco. Como postei anteriormente, é um autor do material, e não do abstrato. É uma coisa valorosa de se ter em consideração, mas nem sempre presente de forma explícita. E o que dessa predominância dos andaimes (no meio intelectual, nos romances literários, metalinguísticos, lidos no mundo acadêmico) expostos não teria de mera repetição?

Acho que este encobrimento é uma característica importante do texto: o livro é cheio de silêncios implícitos, meio fora de moda diante de tantos silêncios explícitos em outros textos.No lugar de falar tanto sobre a dificuldade de falar, sobre as imposições do falar, simplesmente se deixa os silêncios em silêncio, e achei eles suficientemente fortes desta forma, diria até mesmo perfeitamente cabível. 

O romance todo é uma coisa que não quer conversa (apesar de ter tantos diálogos) porque a enxerga como não sendo possível, não é só o pai do início do livro que acha que é impossível convencer alguém de qualquer coisa (um publicitário premiado, vale lembrar). O personagem ao fim chega a explicitar: não temos escolha, mas precisamos agir/pensar como se tivéssemos. É o radicalismo de um personagem radicalista, mas o que se sobressai do espírito da obra (e do Mãos de Cavalo, que narra uma tentativa fracassada de construção pessoal) é a de que os principais eventos de nossa vida estão fora de nosso controle, que somos arremessados para a existência com muito de nossas vidas já decidido por nós (raça, sexo, início social, impedimentos neurológicos, mundo com o qual temos que negociar). Temos um espaço de movimentação para não sermos sufocados (alguns de nós, pelo menos, e no livro nem isto é uma certeza), mas as questões e impasses que nos são impostos não são de escolha nossa. Não é tanto um destino que em algum lugar está traçado para nós (embora o livro negocie de forma incomum com o mítico...) quanto o reconhecimento de uma fraqueza inescapável. É um livro de desespero tranquilo.

Um livro que se mostrasse como construção seria um enfraquecimento destas entrelinhas (e linhas, quando o personagem fala). Construção não implica escolha?

Encerrando, vou rebater de forma mais pontual uma crítica da Elvira: é verdade que o livro é construído em dualismos, mas a meu ver eles não são "falsos no livro", e sim borrados: há a separação da vida urbana em relação a "vida afastada", mas qualquer paraíso possível de Garopaba é minado por uma corrente subterrânea de sinistro que permeia o livro, de segredos que ninguém fala, de cochichos que comentam todo movimento numa vígila incômoda. O próprio protagonista com sua condição neurológica ficaria bem mais bem servido no anonimato da urbe. O duelo do homem versus a natureza é feito, para nós, de vitórias sucessivas e derrotas aleatórias, que tiram o caráter definitivo das vitórias mas que não as destrói: o protagonista é exímio nadador e morre afogado. Continua tendo sido grande nadador. Não há lado que se sobressai, certo e errado claros, e sequer vejo uma tentativa de equilíbrio. A do destino, por exemplo, devemos reconhecer o destino e fingir que ele não existe. Qual a solução? A solução é que não existe solução.

(sobre a questão de gênero, no livro, claramente pertinente, não tenho o que dizer. Acho o livro curioso neste aspecto, mas não tenho leituras no assunto para falar muito. Talvez um dos privilégios de ser homem-branco é que o guideline genérico "don't be an asshole" me pareceu suficiente para lidar com questões assim. O que um homem heterossexual pode falar disso? A resposta não é "nada", mas eu não sei o que é. O livro parece ser algo neste sentido, mas não sei ainda se acho ele bom ou ruim por este lado)

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Post-scriptum mal escrito: Ah, se alguém se interessou em ler o Cormac, leia em inglês. Estou lendo "The Road" (bom, mas não é dos melhores) e por curiosidade abri a tradução brasileira e me desagradou logo no primeiro parágrafo. É uma história pós-apocalíptica, e a abertura do livro escreve como cada dia é mais cinza e frio que o anterior escrevendo "like the onset of some cold glaucoma dimming away the world". Não lembro exatamente das palavras da tradução, mas sei que foi colocado a palavra "progressivamente" no meio. "Progressivamente", pelo menos pra mim, ressoa como uma palavra do mundo moderno, da técnica, e a linguagem do Cormac é toda bíblica, mítica, épica (e todas essas coisas fora-de-moda "impossíveis hoje em dia"). E no Cormac a linguagem é só quase tudo.

4 comentários:

  1. Gostei muito do seu texto. Li o da Elvira ontem e foi meio que um baque, depois de ter lido o livro quase que de uma vez só e de ter ficado tão impressionada com a qualidade da escrita e a força de algumas imagens que nem achei nada pra criticar ali, haha. Vocês dois me deram muito o que pensar :)

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  2. Olá Bruno,
    Terminei a leitura do "Barba" ontem, e ainda estou elaborando minhas idéias e sensações. Estou lendo algumas coisas por aí e gostei bastante destas suas reflexões. Enfim, só o fato do livro ter me colocado nesta busca, é sinal de que teve impacto em mim. Gostei bastante, devo dizer.
    Deixo uma dúvida pra ti (e aqui vem um SPOILLERzinho): ainda não li em lugar algum a interpretação que eu tive do Prefácio em 1a pessoa que antecede a narrativa. Eu entendi aquilo como algo que foi escrito num futuro próximo (dezessete anos depois), quando um sobrinho do "nadador" comenta a morte do tio. Vamos saber, no final do livro, que este sobrinho é o filho de Viviane e Dante. Achei esse prefácio um dos trunfos do livro, mas tenho encontrado outras visões por aí (vi que a Elvira entendeu aquilo diferente até). Como vc entendeu aquilo?
    Um abraço,

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  3. (spoilers também)
    André, estou sem o livro aqui mas pelo que lembro é realmente o sobrinho do protagonista, escrevendo um tempo depois, a ponto de isto não se qualificar como "minha interpretação" e sim de qualquer outra visão ter meio que que correr morro acima para qualificá-lo de qualquer outra coisa.

    Este negócio do início ser na verdade o final (cronológico) está também no Infinite Jest, do DFW, mas de forma mais disfarçada (já que o romance do DFW é todo fragmentado e o do Galera é assustadoramente uno).

    Quanto a interpretação da Elvira, tenho a impressão de que o que ela quis dizer é mais uma coisa da técnica do que do enredo, propriamente dito, mas acho também provável que até um bom leitor não se dê conta do lugar no livro daquele prefácio em 1a pessoa, já que a lentidão da parte inicial do livro (e também por se tratar de um livro longo, ainda mais para padrões de literatura brasileira) pode acabar fazendo o leitor se esquecer do que leu (especialmente considerando o impacto do diálogo do protagonista com seu pai que vem logo depois).

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  4. Pois é Breno.
    Tb achei que o prefácio bem claro, sem margens para outras interpretações. Só para checar se estava vendo coisa demais mesmo :-)
    Olha, acho esse prefácio sensacional. Foi uma escolha extremamente feliz do autor colocá-lo ali.
    Primeiro pelos motivos clássicos dessa opção (Cem Anos de Solidão tinha algo parecido não?): gerar aquela antecipação gostosa do desfecho e ir acompanhando como as coisas chegaram a tal ponto.
    Segundo porque, de início, gera uma certa nebulosidade entre a figura do protagonista e do avô. Vão algumas páginas até vc sacar isso e perceber que, putz, a busca do neto pelo avô criou outro mito, formaram-se duas lendas, uma deu sequência à outra, ambos praticamente se transformaram num mesmo mito.
    E finalmente, porque acho que mora uma certa chave do livro aí - o determinismo macro da postura do protagonista, o fato de que as coisas são como são, sem muita fuga ou espaço para desculpas. O final mítico já estava traçado ali no prefácio, da mesma maneira que vemos ele antecipado em muitas partes do enredo (o sonho recorrente da menina afogada, os bilhetinhos, os sonhos da mãe de Dália, o tesouro enterrado de Jasmim, etc, etc, etc.). Não sei bem se ele deu conta, mas o Galera atirou alto nisso tudo. Eu gostei da ousadia.

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